Marjô Mizumoto
Marjô Mizumoto (São Paulo, Brasil, 1988) é uma artista plástica brasileira de ascendência japonesa e amplo interesse em pintura. Suas obras retratam um mundo repleto de cenas do cotidiano familiar e momentos íntimos intercalados com o fantástico e surreal. Na entrevista, a artista revela como a experiência enquanto mãe e a influência das pessoas ao seu redor despertaram-lhe o fascínio no dia a dia e a vontade de interpretá-lo na tela. Cada pincelada é uma expressão de sua conexão emocional com a cena, levando os espectadores a um lugar nostálgico. Confira a entrevista:
Marjô, gostaria de começar pedindo que você se apresentasse da maneira que achar melhor, com as informações que considera relevantes, especialmente para um público que talvez ainda não conheça sua prática artística.
Eu sou a Marjô Mizumoto. Sou mãe, mulher e artista plástica. Venho de uma família inteira de médicos – sou meio a ovelha negra (risos). Nasci no Brasil, e toda a minha ascendência é japonesa. Estudei artes plásticas na FAAP e fiz uma pós-graduação em história da arte, mas não a concluí. Cheguei até o final, mas fiquei grávida e acabei deixando para depois a conclusão do curso. Quando criança, estudei na escola Waldorf Rudolf Steiner e, por conta da escola, sempre estive envolvida no mundo das artes em geral. Esse contato sempre esteve presente. Durante a faculdade, acabei fazendo assistência para alguns artistas, e esse trabalho acabou me levando para o lado da pintura. Eu não achava que seria pintora, mas no final da faculdade era a única coisa que eu me via fazendo. Desde então, tenho seguido o caminho da pintura.
A sua obra se manifesta na pintura, mas existe todo um processo anterior de manipulação da imagem digital, bem como a etapa de recordação e compartilhamento do seu contexto familiar que resulta na pintura. Como você enxerga todos esses processos? Como funciona a questão da memória, que acredito ser muito importante para você, e como alcançou essa resolução da pintura?
Acredito que minha preferência pela pintura se dá por interesse e competência. Sempre tive grande interesse em registrar momentos, fosse com a câmera ou com o celular. No entanto, nunca fui boa nisso. Na faculdade, comecei a explorar o mundo do vídeo e da xilogravura, o que me despertou o interesse pela construção de imagens. Considero minha fotografia e filmagem bem medianas, mas sinto que quando expresso meus pensamentos por meio da pintura, consigo traduzir melhor o que está na minha cabeça. O interesse pela pintura surgiu por acaso, quando vi uma cena que não consegui registrar. Vi uma mulher olhando para o céu que começava a se fechar, puxando o guarda-chuva com uma expressão angustiada. Aquela cena me marcou. Lembro de estar passando de carro e pensar: “Nossa, eu queria ter registrado isso”, mas não consegui. Foi então que comecei a pensar em formas de traduzir aquela cena. Comecei a me fotografar e tentar pintar, de uma forma muito ruim, na tentativa de capturar aquela cena. Mas quando eu fiz aquela primeira pintura, daquela maneira, gostei de como eu conseguia criar um mundo que teoricamente não existe. Fazer uma assemblagem de uma composição de ideias e traduzir aquilo num plano. Criar isso em vídeo para mim era muito mais complexo, já que precisaria de alguém para filmar e dirigir a cena, entre outras coisas. Durante a faculdade, eu nunca considerei a filmagem como um caminho a ser seguido, eu sempre gostei de resolver as coisas por conta própria. Quando comecei a manipular imagens no Photoshop, criando um universo único, eu gostei do resultado da composição. No entanto, editar minhas fotos no Photoshop não era algo que eu considerava uma obra de arte. Para mim, era um meio, e não o fim. Na pintura, fui seduzida pela pincelada e pela cor, pela possibilidade de transformar tudo aquilo em um lugar, e encontrei o meu lugar. A gravura não entregava a quantidade de cor que eu queria, a fotografia não me permitia fazer isso de uma maneira autônoma. Já a pintura me proporciona tudo isso, é na pintura onde eu consigo resolver essas questões.
É curioso pensar que a pintura pode assustar o artista às vezes. Isso acontece muitas vezes por causa da história da arte e dos grandes mestres que vieram antes. Mas é interessante ver como você consegue se apropriar da mídia sem se sentir intimidada. Ao contrário, você usa toda essa história para trazer as ideias que surgem de sua pesquisa e de suas experiências no campo da pintura.
A pintura nunca me intimidou, ao contrário de outras técnicas. Talvez seja porque comecei a pintar de uma forma muito livre, usando tudo à mão e aplicando pinceladas grossas com pincéis bem duros. Se eu fosse depositando grandes massas de tinta e sobrepondo camada após camada, estava tudo bem. A pintura me deu um pouco da “angústia de Giacometti” de não conseguir hoje, mas amanhã eu pinto de novo, e de novo. Se sei que não resolvi hoje, amanhã eu vou olhar para o problema e enfrentá-lo. Para mim, a pintura sempre foi esse desafio de eu olhar para ela, ela olhar para mim e falar: “Cara, como é que a gente vai se entender?”. Eu não paro até dar certo. No entanto, não é uma coisa que funciona de primeira. Uma pintura, para mim, sempre tem que ter pelo menos três camadas – nunca é apenas uma – até que eu olhe para ela e ache que deu certo. A pintura me permite fazer isso, sempre retornar e adicionar mais camadas. Em comparação, acho o desenho muito mais intimidador. Para mim, o desenho é resumido a uma linha, às vezes bem simples. É uma síntese da imagem. Enquanto isso, a pintura sempre me oferece a possibilidade de reconversarmos.
Nas suas obras, percebo a ideologia da imagem, esse encanto mágico do momento está bem presente. E essa conversa com a pintura expressa melhor esse momento ideal do que uma fotografia ou até mesmo um vídeo.
Transformar uma imagem em uma foto ou vídeo, de forma que tudo pareça tão realista a ponto de questionarmos a veracidade da cena, é um processo bastante complexo. Afinal, estamos habituados a ver o mundo com nossos próprios olhos, e a fotografia é apenas uma representação disso. Se algo não parecer certo, notamos imediatamente. Já a pintura, ela não existe até ela existir. Tudo que transformo em pintura, a partir das fotografias, tem a mesma linguagem da mão que está pintando. Quando escolho as fotografias para montar um projeto, preparo tudo no Photoshop antes de pintar. É como montar uma cena de um filme ou teatro. Eu vou ajustando, mexendo, detalhe por detalhe, nos personagens e no cenário, até que o projeto esteja todo certinho. Se eu te mostrasse o meu projeto, você veria que é uma colagem. Mas quando está na pintura, eu consigo trazer tudo para um único universo.
Sim, por meio da mão, temos acesso ao seu universo. Nada é mais estruturado do que a pintura, que carrega consigo um peso de realidade. Quando pensamos na pintura dos séculos XIV e XV, que era a única forma de expressão artística da época, gosto de imaginar Napoleão pedindo para ser retratado como se tivesse dois metros de altura. É uma construção, pois quando você vê as pinturas de Napoleão, nunca poderá adivinhar sua verdadeira estatura. É fascinante refletir sobre essas construções, pois elas sempre foram intencionais. É ter acesso ao seu mundo, ao seu universo, porque é pela sua mão que essa pintura é criada.
Se Michelangelo ou Da Vinci tivessem acesso às tecnologias que temos hoje para criar uma imagem, ficariam loucos (risos). O que já faziam naquela época com um modelo posando e construindo de forma mais manual é impressionante, imagine com as possibilidades de hoje.
A pintura sempre surge desse lugar de criar algo. No final das contas, todo artista tem exatamente as mesmas coisas: tinta e pincel. Agora, o que aquele artista vai transformar com aquela tinta, como ele vai depositá-la, o que ele vai criar com isso, é o que está ali na cabeça dele.
Pensando nas suas imagens, percebo que você usa muitas cenas do cotidiano da sua família, o que é bem interessante. Conseguimos identificar a época de cada pintura só pela idade das crianças. O que te inspirou a compartilhar esses momentos tão pessoais e incorporá-los em suas pinturas, que são fruto de um processo mais demorado e normalmente voltado para o observador?
Na pintura, sempre fui muito verdadeira ao que realmente me interessava. Quando escolho uma imagem, é uma escolha pessoal. Não costumo pensar muito em quem vai ver depois, onde ela vai acabar, seja na casa de alguém, em um museu, ou quem vai olhar aquela cena. As imagens que escolho têm grande significado para mim. Às vezes, fico em uma pintura de um a três meses. Se não estiver fazendo algo que tenha importância para mim, posso perder o interesse no meio do processo. Começo uma pintura porque quero registrar algo, quero guardar aquele momento. Às vezes, no final de um trabalho, quando está em exibição num museu e vejo todos observando algo tão íntimo meu, me dou conta de que é real e de que todos estão vendo uma parte de mim. Mas esse pensamento só me ocorre depois, não enquanto estou pintando. Quando estou pintando, não penso em quem vai ver, apenas quero registrar aquilo. Se fosse para pintar só para ficar no meu ateliê, continuaria pintando.
É curioso como mudamos. Eu sempre observei as pessoas ao meu redor. Sabe aquela situação em que você está num ônibus ou num restaurante e começa a imaginar a vida da pessoa ao seu lado? Sempre tive isso de observar e tentar entender o universo delas. Eu não imaginava que um dia pintaria crianças. Nunca fui a adulta que gostava de estar com crianças, mas quando me tornei mãe, minha vida mudou completamente. Passei quase cinco anos sem pintar, sendo mãe em tempo integral. E, com isso, o meu olhar estava completamente voltado para dentro, porém continuei com o celular na mão, registrando o que estava ao meu redor. Não era mais um olhar para as pessoas na rua nem para a arquitetura da cidade. Eu estava dentro de casa, rodeada pelas mesmas pessoas de sempre. Quando a pandemia chegou, não mudou muito o meu cotidiano, já que eu vivia um pouco isolada. Meu ateliê é em casa, e as crianças também ficam em casa. Quando não estava sendo mãe, estava sendo artista. O universo que eu compartilho pela pintura pode não ser muito planejado, mas é o que me rodeia hoje. Talvez quando as crianças crescerem, ou se eu um dia fizer uma residência em outro país, outras coisas poderão brilhar. Mas eu gosto de trazer o que mais me atrai no momento. Há certas imagens que persistem na minha mente, quase como se estivessem insistindo: “Você precisa me pintar”. Essas imagens não desaparecem até que eu as pinte. Então, em relação à cronologia das imagens, nem todas seguem uma ordem cronológica rígida. Às vezes, um projeto pode ter prioridade, mas a imagem que foi deixada para trás ainda permanece na minha mente. Por isso, mesmo depois de muito tempo, eu retorno para aquela cena porque eu necessito pintá-la.
Você mencionou essas imagens que persistem e pinturas que podem levar um tempo para serem concluídas. Como você lida com o processo de ter uma imagem ou um projeto em mente e decidir quando é o momento certo para finalizá-lo e começar a executá-lo?
Quando começo um projeto, normalmente já investi bastante tempo trabalhando nele. Já dediquei dias a uma única imagem, apliquei filtros, fiz de tudo. No entanto, enquanto estou pintando, também estou em diálogo com a pintura. Às vezes, a pintura parece me dizer: “Não é bem isso ainda” e, embora eu possa não ter uma referência clara do que será, sei que ainda não está certo. Em alguns momentos, mudo completamente a pintura, mas antes disso, volto ao computador e exploro várias possibilidades no projeto à medida que a pintura se desenvolve. Para mim, a pintura não é um projeto concluído até o final. Então, mesmo que eu tenha uma ideia do que quero que seja, a pintura e o projeto são elementos distintos. Isso é interessante, porque começo o projeto achando-o incrível e termino achando ele uma porcaria (risos), porque, para mim, a pintura acaba superando o projeto.
Nesse momento, o projeto se torna um rascunho do que a pintura consegue ser depois?
Sim, é a pintura que me dá essa liberdade. Sinto que ela me trata muito bem, e eu também a trato muito bem. Mesmo que eu sinta que a foto do computador me apresenta todas as possibilidades para realizar a pintura, é a pintura que mais me retribui.
Estamos falando de como cada pintura é um universo em si. Em uma exposição individual com várias pinturas, por exemplo, você cria uma conversa entre as obras? Ou você está aberta a permitir que um curador ou uma galeria criem esse diálogo?
Eu nunca criei uma série de obras (risos). Os trabalhos são sempre bem individuais. No entanto, é curioso perceber que, depois de concluir uma obra, ela geralmente se relaciona de alguma forma com algo que já fiz. Nunca determinei uma paleta de cores ou algo específico para uma exposição. O que acontece às vezes é que uma pintura de 2010, outra de 2020 e uma de 2023 acabam aparecendo na mesma exposição, porque o curador achou que elas conversavam. Estou organizando minha exposição individual para o próximo ano na Galeria Anita Schwartz [setembro de 2024]. Preciso escolher algumas pinturas para exibição e quero que ela tenha a sensação de um domingo à tarde, e com isso tenho muitas possibilidades. Um domingo à tarde pode ser um churrasco em casa, um dia com meus filhos e seus primos no interior, ou até uma ida à praia em família. Mas, para mim, domingo é o dia da família, quando tentamos nos reunir para um almoço juntos. Quero que essa exposição transmita essa sensação. O desafio é decidir quais imagens vou criar, pois tenho de tudo aqui.
Na minha perspectiva pessoal, suas pinturas são bastante inclusivas em relação ao espectador. Embora eu não tenha filhos, quando observo algumas de suas pinturas, sinto a mesma alegria que sentia quando era criança brincando com meu irmão. Consigo visualizar a felicidade de uma das minhas irmãs, que é mãe, com seus filhos – meus sobrinhos. Então, para mim, suas pinturas criam uma atmosfera de inclusão, na qual se compartilham alegrias e sentimentos. E, recentemente, a tarde de domingo se tornou aquele momento especial em que escolhemos cuidadosamente os amigos com quem queremos passar o tempo, descansar e recarregar as energias para a semana que está por vir. Na sexta à noite, você pode convidar todos que conhece, mas para um almoço de domingo, escolhemos com cuidado os amigos para compartilhar o momento.
Eu diria que realmente me coloco na minha pintura. Mesmo quando estou retratando meus filhos, tento trazer algo da minha própria infância. Por exemplo, tem um jogo chamado “pesca-peixe” que me lembra muito da minha infância. Se eu tiver que escolher um momento para representar eles brincando, provavelmente seria eles jogando “pesca-peixe”. Gosto de incluir elementos que são mais da minha infância do que da deles. Mas acontece meio que sem perceber, porque são coisas que me interessam muito e que eu quero incorporar. Acho que isso acaba fazendo com que as pessoas se identifiquem com o meu trabalho e se sintam mais próximas dele, pois remete a momentos e pessoas da infância delas. Eu questionei durante muito tempo se o caráter íntimo e pessoal do meu trabalho conseguiria evocar emoções nos outros. Cheguei a me perguntar: “Será que alguém vai querer ver uma pintura da minha avó na cama? Ou do meu filho dormindo com meu marido?” (risos). De certa maneira, não carrego muito do universo popular brasileiro em meu trabalho. Acabo inserindo aspectos “gringos”, de fora do Brasil, já que meu universo foi construído de maneira dinâmica, com várias influências ao meu redor, tanto brasileiras quanto japonesas e internacionais. Sempre tive a dúvida se as pessoas conseguiriam se conectar com o meu trabalho, e essa resposta veio quando elas começaram a dizer que se identificavam com o que eu fazia. Recebo relatos que às vezes me emocionam. Um dia, uma garota me contou que tinha visto meu trabalho e disse: “Sabe, eu nunca conheci meu avô. Ele já tinha falecido quando eu nasci. Mas ao ver a imagem do seu filho com o avô dele, senti como se tivesse vivido aquele momento”. Ela me agradeceu ter feito aquela pintura. Isso é muito forte. Você faz algo porque viu uma cena que te marcou de tal forma que quis registrar e isso tocou uma pessoa que você não conhece, num momento em que você não estava lá, porque ela sentiu que viveu uma cena que não viveu. É muito legal.
Esse é um dos grandes objetivos da arte: nos levar além de nós mesmos, permitindo a descoberta de novas ideias e pensamentos. Isso envolve explorar uma memória inexistente e o sentimento de nostalgia por algo que nunca aconteceu. Na abstração encontramos um caminho mais fácil para navegar por esses sentimentos do que no figurativo, que busca envolver o observador na cena. Seus trabalhos, com suas grandes dimensões, colaboram para essa imersão. Como você decide a escala e o tamanho das suas pinturas?
Quando comecei a pintar, minhas pinceladas eram marcadas e grossas, era difícil trabalhar em espaços pequenos. Por isso, o tamanho da tela nunca me intimidou; eu precisava de espaço. Com o tempo, percebi que, ao pintar um retrato menor do que o tamanho humano, ele me parecia muito pequeno. Depois de fazer várias pinturas, comecei a entender como cada uma me respondia, se estava certo ou não. Eu não gosto de pintar a mesma ideia mais de uma vez. Se eu criei uma imagem, a pintura é específica para essa imagem, uma nova pintura virá de uma nova imagem. Não costumo refazer uma pintura que já concluí, porque não vejo sentido nisso. No entanto, às vezes olho para a pintura finalizada e penso que poderia ter sido maior. Parece que a pintura teria sido mais correta se fosse maior. Comecei a entender que, para mim, a proporção da imagem deve ser, no mínimo, do tamanho real. Para definir o tamanho da tela, eu imprimo o rosto no tamanho que pretendo pintar, para verificar se me sinto confortável com ele ou se deveria ser maior. Quando a pintura tem vários personagens em perspectiva, sempre verifico o tamanho do rosto do personagem mais ao fundo. Se o personagem da frente estiver muito grande, isso não é um problema para mim. No entanto, se o personagem de trás estiver em um tamanho muito menor, aí sim, temos um problema.
Você diria que talvez a relação entre a pintura e quem a observa influencia nessa questão de tamanho?
Na verdade, o foco não é tanto a pessoa que está observando, sou eu. Isso é intrigante, a pintura é uma extensão de mim. Pode parecer egoísta, mas a pintura, para mim, é minha (risos). É uma conversa muito íntima comigo mesma. Não estou tão preocupada com a reação das pessoas a ela, mas sim com a minha própria reação.
Como é para você o processo de compartilhar sua pintura com o mundo e, de certa forma, dizer adeus a ela? Você lida bem com isso ou acaba guardando várias delas?
Sinto um apego forte em relação às minhas pinturas enquanto estou criando, chegando a pensar que nunca conseguirei deixá-las sair do meu ateliê. No entanto, quando termino, percebo que elas precisam ser compartilhadas com o mundo e que mantê-las apenas no meu ateliê não seria o certo. Ao mesmo tempo, existem certas pinturas a que me apego muito e que prefiro guardar só para mim, sem intenção de vendê-las. Por exemplo, em uma das minhas primeiras pinturas, eu retratei a minha vó de uma maneira solta e despretensiosa. Ela não é tão boa tecnicamente, mas quando olho para ela, eu sei de onde vim como pessoa e como pintora, e se precisar voltar para esse lugar, eu sei que posso voltar. Se hoje me interessa uma pintura que é mais minuciosa, mais detalhista, sei que muito de mim está um tanto dentro dessas pinturas soltas. Embora eu tenha muitas pinturas que retratam momentos únicos com meus filhos, não me preocupo em deixá-las ir. É gratificante quando elas encontram um novo lar, e as respostas que recebo das pessoas me deixam feliz. Sei que mesmo que minhas pinturas possam acabar em qualquer lugar do mundo, elas sempre terão uma conexão comigo.
Parece que você tem uma conexão forte e saudável não apenas com a pintura, mas também com seus filhos. A maternidade alterou de alguma forma sua relação com a pintura?
Nunca tive problemas em deixar minhas pinturas irem embora, mas, é claro, é sempre mais fácil ver uma pintura de um amigo partindo do que uma de um filho. Eu sabia que tinha algo ali que não era totalmente meu. Quando você é mãe, você sente algo que de certa forma te pertence. Eu entendo que, um dia, meus filhos vão partir para o mundo, mas ainda há aquele sentimento de que eles são meus filhinhos, meus bebês (risos). Pode parecer brega, mas as frases que você ouve de uma mãe, como: “O amor de mãe é indescritível e diferente de qualquer outro amor”, acabam sendo verdade. A maternidade traz tantas experiências novas que você inevitavelmente acaba levando muitas delas para a sua vida como um todo. Eu traduzi muitas dessas novas sensações, responsabilidades e tarefas para a minha vida: essa nova forma de se dedicar a alguém além de mim mesma, pensar na comunidade, no lugar onde moro, nas pessoas ao meu redor. Coisas que, quando somos jovens, talvez não questionemos tanto porque estamos mais focadas em nós mesmos. Mas quando você tem filhos, tudo isso deixa de ser apenas sobre você. É sobre o que você está deixando para trás, onde você quer que seus filhos cresçam, quem você quer que eles sejam na sociedade. Você começa a pensar de maneira mais ampla. Há algo em ver sua pintura indo embora, sentir que ela não pertence só a você, mas também de certa forma ao mundo. Você aprende a ver além de si mesmo, a entender a comunidade, o ser humano e a sociedade como um todo. Isso não tem tanto a ver necessariamente com se tornar mãe e refletir essa mudança no seu trabalho de pintura, mas a maternidade muda você de uma maneira que acaba provocando mudanças inevitáveis.
E pensando que nós, como sociedade, nossos sistemas cotidianos, somos construídos com base no patriarcado, e que, por consequência, acabamos excluindo muitas experiências e o sentimento de maternidade. Suas pinturas compartilham sentimentos de maternidade, permitindo que, mesmo aqueles que não são mães, entendam essas emoções que permeiam determinada cena. Isso nos ajuda a aprender e incorporar essas experiências em nossas vidas.
Acredito que a questão do meu trabalho não é tanto sobre a maternidade, mas sim sobre o cuidado, o afeto, compreender e querer bem o outro. E isso é algo acessível a todos nós, mesmo que você não experimente a maternidade em sua vida. Seja você mãe ou não, há algo ali que você sente e compreende, um sentimento que você reconhece. Não acho que o problema real é termos crescido numa sociedade patriarcal, mas a falta de valorização do cuidado na sociedade. É interessante também considerar isso dentro do campo da política. Acredito que é crucial ter mais mulheres na política, não apenas por serem mulheres, mas porque conseguimos abordar questões a partir de uma perspectiva menos individualista. Temos um olhar mais voltado para o coletivo. Não é apenas uma questão de gênero, mas talvez ela se dê porque as expectativas colocadas nas mulheres desde a infância são diferentes das dos homens. Como mãe de um menino e uma menina, eu percebo que os desafios educacionais são diferentes. Por exemplo, não preciso enfatizar tanto para a minha filha que ela deve ser empática, que deve ser amigável com seus colegas e que não se deve bater em ninguém. Às vezes, faço isso, mas não é a mesma abordagem que uso com meu filho, pois desde pequenos eles têm comportamentos diferentes. Nesse caso, eu, como mãe, tenho duas opções: incentivar meu filho a se defender e revidar de forma mais agressiva, ou ensiná-lo da mesma forma que ensinaria à minha filha, explicando que a agressão é errada e incentivando a empatia e o carinho. Talvez a maior questão que enfrentamos sobre as diferenças de gênero seja o machismo, a ideia de que o homem deve ser bruto e grande provedor inabalável. Desde cedo, certas expectativas são depositadas em meninos e meninas de formas diferentes. Quando me tornei mãe, percebi que uma das atitudes mais revolucionárias que podemos ter é a forma como criamos nossos filhos. As crianças aprendem a ser humanas com base em quem está ao redor delas, nos exemplos que veem e nas coisas que são ditas. Essa criança um dia será um adulto que criará leis, que poderá impedir ou iniciar uma guerra, é o adulto que decidirá priorizar a economia ou a saúde. Hoje, entendo que ser mãe é um papel social que tenho como cuidadora e educadora desse pequeno ser que se tornará um adulto.
Com certeza, não é uma tarefa fácil. À medida que expandimos o cuidado e a educação como algo social, mais se destaca o fato dessa responsabilidade ser de todos, não só dos pais.
Sim, da sociedade, de quem está ali cuidando. O político, em essência, deveria ser aquele que cuida da sociedade. É a pessoa que colocamos lá para cuidar de nós, dos nossos interesses.
Marjô, é incrível conversar com você, já que muitos dos assuntos que discutimos são temas muito presentes na sua pintura. Agradeço o compartilhamento dessas imagens íntimas e sentimentos que não são fáceis de transformar em uma pintura num contexto de arte contemporânea, no qual o confronto é às vezes mais fácil de ser observado. Suas pinturas têm um peso conceitual e emoção forte, transmitindo sentimentos positivos de acolhimento que vão além do núcleo familiar e que abrangem o cuidado e o amor.
Eu que agradeço muito. Como você disse, o confronto é mais midiático, atrai mais atenção. E a sutileza é, por natureza, sutil. Portanto, é difícil encontrar espaço para discutir isso. Eu me sinto muito grata por fazer algo que amo, compartilhar algo em que acredito e, de certa forma, ser ouvida sem precisar gritar. Hoje temos tantas maneiras de gritar, de falar sobre um assunto, mas toda vez que abordo um tema, sinto que entro num lugar de responsabilidade. Por exemplo, existem várias formas de falar sobre uma guerra, e a mais comum é por meio das suas atrocidades. Entendo que há o aspecto de confrontar e gerar repulsa com tais cenas, mas qual é a minha responsabilidade como artista ao adicionar mais uma dessas imagens ao mundo? Será que tenho outra maneira de falar sobre esse sentimento, sobre o que estamos perdendo ou aquilo em que não estamos prestando muita atenção? Tenho muitos pensamentos, bons e ruins. Às vezes, tenho mais pesadelos do que sonhos. Se eu fosse traduzir o que está na minha mente, teria muitas coisas negativas para mostrar ao mundo, mas eu estaria fortalecendo essas imagens ruins. Como artista, sinto que devemos valorizar nossa humanidade para além do que muitos consideram talento. Porque não é sobre ser competente no fazer artístico, produzir obras tecnicamente perfeitas, mas sobre aquilo que é verdadeiramente humano que temos dentro de nós. Esse é o maior presente que podemos deixar para o outro.
Entrevista realizada em 13 de novembro de 2023 remotamente via Zoom