Celina Portella
Celina Portella (Rio de Janeiro, 1977), bailarina e artista plástica carioca, investiga através de diferentes técnicas e formatos a interação entre o corpo e a imagem no espaço. Em suas obras, que abrangem vídeos, fotografias e instalações, a artista utiliza extensivamente seu próprio corpo como instrumento para provocar reflexões sobre o corpo feminino, a percepção e a identidade. Na entrevista, Celina explora sua abordagem analógica e discute o olhar coreográfico que desenvolve em suas criações, destacando, ainda, o caráter lúdico que permeia suas composições. Confira:
Celina, muito obrigado por estar conosco hoje. Gostaríamos de começar pedindo que você se apresente, compartilhando qualquer informação que considere importante sobre você e o seu trabalho.
Eu que agradeço pelo convite! Eu sou Celina Portella. Brasileira, carioca, artista plástica e bailarina. Tenho uma trajetória longa na dança. Aquela coisa de menina que os pais colocam na escola desde pequena. Comecei a trabalhar muito cedo profissionalmente dando aulas, dançando em companhias etc. Na faculdade, comecei a estudar design gráfico, mas percebi que não era bem isso que eu queria, depois estudei artes plásticas. Na prática, comecei a fazer meus trabalhos através da dança, porque já dançava profissionalmente e comecei a fazer filmes em formato Super-8. Durante algum tempo trabalhei com a Lia Rodrigues Companhia de Danças e com o meu próprio trabalho ao mesmo tempo. Então, eu viajava muito, circulava em muitos ambientes e circuitos diferentes, apesar de próximos. Sou aquela pessoa que quer sempre estar e conhecer lugares novos. Depois de um tempo direto no Rio, acabei vindo para São Paulo, porque na época pretendia fazer um mestrado fora do país, mas não aconteceu, então decidi vir para São Paulo. Eu adoro o Rio, mas estou curtindo morar em São Paulo. Tive o meu filho e logo veio a pandemia, então ainda estou aproveitando e conhecendo a cidade, mesmo já estando aqui há 5 anos (em 2024). Meu trabalho se desenvolveu nesse percurso, através das diversas experiências que fui vivendo. Vamos falar mais dele agora…
Você mencionou que é bailarina. Como você percebe a influência entre suas práticas de dança e artísticas?
Comecei a misturar as coisas fazendo filmes com Super-8, eram movimentos criados para aquele tipo de câmera. Trabalhava em dupla com outra artista, Elisa Pessoa. Fomos fazendo alguns filmes e, com o passar dos anos, percebemos que estávamos fazendo um trabalho que tinha uma unidade. Ela me filmava dançando. Eram imagens meio absurdas, meio improváveis, uma dança para a câmera. Não havia uma narrativa que contava uma história. Mas estava muito atravessado pela dança ou por algum tipo de ação ou movimentação. Esses foram os primeiros trabalhos. Depois, o digital começou muito forte, e comecei a trabalhar com a projeção do corpo em tamanho real sobre algumas superfícies, e às vezes refilmar isso, criando camadas e texturas nessa imagem digital que, para mim, é muito difícil. A câmera analógica, a Super-8, o filme analógico, tem uma estética que me interessa e que é muito linda. Me acostumei com o digital, mas, quanto mais perfeita e “limpa” a imagem vai ficando, menos interessante acho (risos). Então, comecei a prestar atenção nessa questão estética do filme e da imagem. E a brincar com isso. Eu acho que, desde o início, nos filmes meus onde há dança, eu não estava apenas falando de dança. Aliás, nunca nada é apenas uma coisa. Mas me interessa muito essa liberdade que se tem nas artes visuais de poder pesquisar o que quiser, independentemente da linguagem ou da técnica que se esteja usando, e de poder desconstruí-las. Em outros contextos, isso também é possível, mas, para mim, o das artes plásticas me interessou mais. Para mim, não há muita separação, mas o que eu percebo hoje em dia é que o meu trabalho foi se desenvolvendo a partir de um olhar coreográfico. No início, eu trabalhava muito com vídeo, site-specific, com a projeção do corpo. E, depois, comecei a migrar para a tela, com o corpo interagindo com a moldura da tela, primeiro no vídeo e, depois, na fotografia. Também iniciei mais fazendo trabalhos para instituições, então era um trabalho criado para aquele espaço específico. Durante muito tempo eu não trabalhei com galeria, por exemplo, até porque eram projetos maiores, com máquinas, vídeos, videoinstalações. No entanto, comecei a pensar no formato adequado para estar numa galeria. Acredito ser importante estar em diferentes contextos, na galeria, na rua, no ateliê, nas feiras, no mercado, na instituição, nos museus e nos espaços independentes. Foi por isso que comecei a pensar em um formato que dialogasse também com a galeria. Daí a produzir fotografias que, assim como os vídeos, tinham uma relação forte com o corpo, a dança e com a materialidade da imagem. Na maioria dos meus trabalhos sou eu mesma quem aparece nas imagens. Como eu sempre dancei, eu sei como fazer as coisas que invento e usava a mim mesma, por ser mais prático e preciso. Mas não quero falar só de mim, mas sobre o corpo da mulher. Hoje em dia, não estou dançando em companhias, mas para mim é e sempre será muito evidente e presente a questão da coreografia, do olhar coreográfico, que é a escrita do movimento do corpo no espaço e naquele espaço específico do vídeo ou da foto. Se, por exemplo, eu estou interagindo com a moldura, eu tenho que saber o que tenho que fazer para que a ideia funcione tecnicamente, os tempos e a coreografia da câmera etc. Claro que, na fotografia, às vezes, é mais fácil, porque ela é estática. No vídeo, alguns trabalhos foram bem desafiadores, em que eu precisei pensar em como a ideia que eu tive funcionaria naquele formato.
É interessante considerar que, embora a fotografia seja estática, é preciso capturar e representar um movimento em uma imagem. Por exemplo, ao falar da sua experiência com a coreografia, posso perceber isso na sua série “Corte”, através do movimento do braço indicando a ação que ocorreu para resultar no corte.
Gosto da ideia de realizar ações, mais do que interpretar algo. Mesmo que não haja uma interpretação, no sentido de criar um personagem, ao se mover para a câmera, você está sempre criando uma coreografia e interpretando movimentos, e isso depende da experiência que você tem. Em qualquer tipo de técnica de movimento, se você tem mais experiência, está mais preparado em relação a como fazer um certo movimento ou pelo menos tem maior consciência de qual movimento está fazendo e como ele vai ficar. Então, quando eu digo que na imagem estática é mais fácil, é porque posso fazer e refazer as fotos até encontrar o resultado que espero. Mas, mesmo que eu possa repetir, tem um limite também. O ideal é mergulhar na performance e ir tirando as fotos sem tanto controle. Às vezes eu paro um pouco para dar uma olhada se o material está saindo do jeito que eu quero, desde o enquadramento, o ângulo etc., que pode ser muito específico dependendo do projeto. Nos trabalhos de vídeo, é mais importante que as coisas deem certo mais rápido. Muitas vezes é complicado ficar repetindo. Às vezes você faz um take de 10 minutos, você olha e não está bom. Você precisa fazer de novo. No cinema, por exemplo, tem toda uma equipe e toda a grana investida na filmagem, tudo precisa dar certo meio de primeira. Na produção de videoarte, tem uma contradição: pelo fato de não envolver tanta estrutura, existe um pouco mais de liberdade, ao mesmo tempo também tem que dar certo logo, pois não há verba para refazer as coisas. Para mim, isso faz com que a performance/movimento e sua “efemeridade” fiquem presentes no trabalho. Mesmo que uma ação seja registrada em filme, vídeo ou em foto, e mesmo que o trabalho não seja um registro de performance, a performance que aconteceu para o trabalho existir fica visível na imagem, mesmo na imagem estática.
Como você descreve a sua relação com a performance?
A performance não é a linguagem final dos meus trabalhos, mas está dentro dele. Quando eu filmo ou fotografo, o que acontece para a câmera só acontece naquela hora e não dá para ficar refazendo um milhão de vezes. Tem uma coisa do efêmero que é essencial, apesar de ser filmado, fotografado ou gravado. Mas, em geral, o suporte final é um vídeo, é uma foto, é uma instalação, uma videoinstalação, não é uma performance.
Há um traço de performance na obra, talvez devido ao seu corpo, que faz referência ao movimento. Pensando na obra Movimento², é um desafio classificá-la, pois é um vídeo, mas também uma escultura, não é uma performance, mas visualmente se apresenta como tal. Minha leitura seria algo como uma gravação de uma performance que se transforma em performance dentro do contexto da mecânica que move a tela.
É porque existem duas coisas diferentes. A documentação de performances, que é quando o artista que está fazendo uma performance e é filmado. Aquilo fica documentado em vídeo, que vai para o museu, para a galeria etc. No caso do Movimento², não é só a documentação de uma performance. Eu filmei uma movimentação muito específica para a câmera, para criar imagens que iriam ser apresentadas naquele suporte/objeto que tinham características especificas também. Por isso chamo esse trabalho de vídeo-objeto. Eu o classifico também como videoinstalação. A performance aconteceu em algum momento, ao filmar no vídeo, mas não é a linguagem final da obra. Nessa série há uma tela que se desloca em um trilho horizontal, outra em um trilho vertical, e algumas que são fixas, onde o corpo aparece em dimensões diferentes. Com mais ou menos espaço eu acabo me movimentando de formas diferentes em cada vídeo-objeto. Esse trabalho teve uma questão de cálculo de área, distância e velocidade. Eu precisei fazer umas contas matemáticas, foi um trabalho bem louco. Pois, por exemplo, se eu desse 10 passos para a direita e 15 para a esquerda, a tela iria sair do trilho. Eu tinha que definir quantos passos precisava dar para caber no tamanho de trilho e qual a velocidade dos passos, entre outras coisas. Eu fui trabalhando com a fotografia e a edição e tudo que se apresenta de forma muito autodidata. Assim, de repente, me vi fazendo contas de matemática, que, apesar de simples, eu não me lembrava muito, porque eram da época da escola (risos). Nesse trabalho, o vídeo e a edição me levam para um universo matemático. O trabalho o leva para muitas direções quando você faz tudo. Você sempre pode contratar alguém para fazer ou resolver questões técnicas do seu trabalho, mas, no caso, eu mesma que fiz esses cálculos, porque dava. Já na parte de programação e mecânica, eu contei com o trabalho de outros profissionais. De qualquer forma, é sempre necessário entender como cada coisa funciona para que o trabalho possa acontecer.
Sim, é interessante ver essa simetria e sinergia entre o corpo e a mídia em suas obras. Por exemplo, as mãos em tamanho real rezando e as fotografias em formatos maiores. Às vezes, olhamos para o vídeo e pensamos que é super fácil. Mas, na verdade, não é. Há sempre uma negociação entre o corpo, o vídeo e a forma como o vídeo será exibido.
É engraçado, porque hoje em dia todo mundo tem acesso tanto ao vídeo como à fotografia, muito mais que antes. E, às vezes, você vai fazer um vídeo e expor numa exposição e acaba virando uma loucura, porque depende do formato de vídeo, do Codec, do HD que vai estar tocando na TV, da TV, qual o formato que ela aceita etc., o vídeo pode simplesmente não rodar. Eu sei que isso são coisas técnicas, mas tudo isso acaba entrando no trabalho. Apresentar um vídeo comum pode ser fácil ou não. Apresentar um vídeo-objeto ou uma videoinstalação já é mais complexo. Principalmente quando a imagem e o suporte são partes inseparáveis e codependentes. O vídeo sempre foi inserido em um contexto de novas tecnologias. Eu comecei a participar de eventos relacionados a isso e pensava “eu não tenho nada a ver com novas tecnologias, eu sou bailarina (risos)”. Eu não sou a pessoa mais expert do mundo com computadores. Tem gente que consegue ver tutorial e resolver de tudo, acho isso maravilhoso porque facilita a vida. Mas a questão técnica não é a coisa que mais me interessa.
Eu costumo dizer que meu trabalho é analógico, mesmo que eu use tecnologia para fazê-lo. Por exemplo, quando faço a projeção do corpo em tamanho real, que eu projeto, filmo novamente, projeto, filmo de novo, aquilo vai criando camadas, mas isso é feito sem efeitos digitais. Muitas vezes as pessoas vêm e dizem: “tem um efeito no Photoshop que vai ficar ótimo”, porque no Photoshop você consegue montar várias camadas. Mas não é sobre isso. Tenho um trabalho mais recente, uma série que eu chamo de “Foto-pinturas”, que são fotos do meu corpo se relacionando com um quadrado, um retângulo e um círculo. Eu fiz alguns objetos de ferro para prender na parede e fazer as fotos. Depois, esse objeto some e eu pintei aquelas formas. Eu queria fazer algo em que o corpo se relacionasse com a pintura como matéria. Eu poderia fazer um efeito, colocar no Photoshop ou me deitar no chão e fotografar de cima, para não ter que usar esses objetos. Mas, usando-os, aquela performance, aquela situação com aquele formato, aconteceu de fato. Eu estava interagindo com as formas de fato. E, para mim, isso faz muita diferença, é a minha pesquisa. Então, nesse sentido, eu digo que o meu trabalho é analógico, pois quase tudo é real mesmo, são espécies de efeitos analógicos. Às vezes eu limpo um pouco a foto, mas eu não faço montagens ou animações. No trabalho do trilho, um dos vídeos tem uma sequência de 12 minutos. Se por acaso eu errasse um passo, daria errado e teríamos que filmar de novo. A tela vai até o final, até o meio, até 1/4 e até 3/4 e volta, é uma verdadeira coreografia em cima do trilho.
Muitas de suas obras têm uma qualidade lúdica que diverte e fascina. De onde surge esse interesse? É algo que simplesmente ocorre ou que você busca intencionalmente criar?
Eu acredito que é algo que acontece. Os trabalhos são decorrentes uns dos outros. Eu fiz filmes com a Super-8, depois a projeções do corpo em tamanho real, e a partir daí eu tinha que encaixar a imagem 2D em superfícies 3D. Então comecei a refletir muito sobre os limites e o suporte da imagem. Foi a partir daí que passei para a tela, para a moldura, para o suporte de papel. Uma coisa foi levando a outra. Meu trabalho é apresentado de maneira que as pessoas entendam sem a necessidade de estudarem para compreender. A questão do lúdico tem um aspecto que eu acho bom. As pessoas não entendem como o trabalho funciona e ficam tentando descobrir qual é o truque por trás da obra. Mas, logo, qualquer pessoa entende, pois são dispositivos analógicos e simples. Nesse sentido, eu diria que é um trabalho popular, é fácil e muitas pessoas de diferentes cenários acessam. Embora a qualidade do lúdico também se encaixe, eu me identifico mais com o caráter irônico. Eu estou falando muito de movimento, de percepção e do corpo da mulher, e, para mim, dessa forma, estou falando de política. Tudo é político, mas o trabalho não tem um discurso político evidente, ele possui algumas camadas por trás das ironias, das coisas lúdicas, tem múltiplos sentidos. Eu não tenho o objetivo de ser irônica, divertida ou qualquer coisa nesse sentido, mas acho que faz parte do meu jeito e da minha forma de comunicar.
Na série sobre o fogo, é notável que um corpo feminino, um rosto feminino, causa a destruição da imagem. Do ponto de vista político, isso dá poder à figura passiva, seja ela observada ou fotografada, por homem ou mulher. Essa figura passiva tomando uma ação na sua própria representação.
Sim, a série “Fogo” tem as imagens que chamo de “Queimadas”, que são fotografias do meu torso queimadas múltiplas vezes, criando diferentes formas, tem o trabalho Fogo-Fátuo, que é um vídeo no qual minha imagem começa também a queimar e vemos flamas, e tem também uns dípticos em que uma fotografia está queimada e a outra é uma foto da própria imagem pegando fogo. Uma é a matéria já queimada e a outra é a matéria em chamas, mas é apenas a foto da matéria, não é a própria matéria ali viva. Sobre destruir a própria imagem, a própria representação e, portanto, a representação de uma mulher, é um ato iconoclasta, em que destruir é também criar algo novo. Quando a figura representada toma ação, ela deixa de ser passiva e já representa algo diferente. Quando estamos falando da figura de uma mulher, isso levanta diretamente questões feministas. No vídeo do “Fogo”, eu projeto sobre um papel e queimo esse papel no momento exato, assim, também preciso realizar uma coreografia, pois eu sei que tenho que sincronizar a ação que eu vou fazer com a ação que foi feita no vídeo. Parece algo complexo, mas acaba que é muito simples, que cria um efeito. Isso causa um estranhamento, as pessoas questionam “nossa, mas está queimando o quê, aonde?”. Então penso sobre um questionamento da percepção. É sobre isso que a gente mais tem discutido hoje em dia, principalmente por causa das mídias sociais e o acesso à fotografia. A representação da verdade é a grande questão da arte, de buscar o real, um retrato da realidade. Nós temos realidades paralelas, cada um cria a sua. Existe uma realidade consensual quando fazemos pactos ou acordos para que todos acreditem mais ou menos nas mesmas coisas, mas a realidade é completamente relativa. Quando se trata de mídias sociais, questão central hoje, a ideia de que as imagens representam o real pode ser muito perigosa. Nós precisamos pensar em como ter um olhar crítico sobre o que estamos vendo. As pessoas olham e dizem “ai, que absurdo” sem sequer entender a situação. Ainda conseguimos perceber quando é uma fotomontagem ou pelo menos sabemos que a fotografia não garante que o que vemos nela seja real. Porque já temos muito acesso à produção fotográfica e muitas pessoas sabem mexer em Photoshop ou em apps de edição de imagem. Mas agora, com o deep fake, as pessoas embarcam totalmente na ideia de realidade. Porque são vídeos e por isso acreditam que as imagens são a realidade. Eu acho que, quando coloco em questão o que o espectador está vendo, é uma forma de chamar atenção para tudo isso.
Na série de fotopinturas, a pintura na parede termina com a fotografia da mão segurando o pincel. Quando o visitante vê o traço, ele pensa que foi feito por alguém, talvez o artista. Mas, ao ver a fotografia, o espectador é desafiado. Aquela percepção real do traço muda, pois não sabemos se foi realmente o artista que o fez. A pintura nos conduz à conclusão de que é a fotografia.
Pois é, apesar de ser um efeito evidente, traz esses questionamentos. Você pensa que é uma coisa, mas não é. Você sabe que o traço não foi feito por aquela mão da foto, mas ainda assim permite se iludir. Não é apenas um efeito que conecta a pintura real a uma foto que afirma ter feito a pintura, eu acho que vai além disso. Você se surpreende e questiona o que está escolhendo ver, ou escolhendo acreditar, pois sabe evidentemente que é “falso”. Agora isso me fez pensar no trabalho Público, que fiz na Trienal de Artes no Sesc de Sorocaba, que é uma videoinstalação interativa. É uma sala fechada e, quando o espectador entra, está em cima de um palco. E, na frente desse palco, tem uma plateia, que são várias televisões, e, em cada televisão, aparece o busto de uma pessoa. Daí, tem uma programação que, quando o espectador entra, os sensores avisam, as imagens mudam e todo mundo começa a aplaudir. Foi muito legal fazer esse trabalho, porque, às veze,s você inventa um projeto grande, uma instalação complexa, e pensa: “nossa, será que isso vai funcionar?”. E foi muito interessante ver realmente o espectador entrar e ficar sem graça, como se ele estivesse realmente sendo aplaudido por pessoas presentes. Mas é lógico que ele sabem que as pessoas não estavam ali. Na época nem havia essa coisa de Zoom e de tanto videocall. A instalação Público inverte o lugar do espectador e do artista. Geralmente, o público está ali olhando a obra e está protegido, de certa maneira. Mas, quando ele entra nessa instalação, não tem jeito, está todo mundo olhando, batendo palmas, e ele vira o centro das atenções. É claro que a pessoa sabe que são televisões e inclusive que não é ao vivo. Mas por que isso causa desconforto ou vergonha? Ao confrontar as telas da televisão, você acaba se perguntando se de fato tem alguém ali ou não, mesmo sabendo que não tem. Mas, por um segundo, você acredita que tem. Por um segundo, você sente o que sentiria se aquilo fosse verdade. Isso nos coloca em conflito com a imagem e fricciona nossa relação com ela. Isso é o que me interessa. Acredito que temos instintos ancestrais que nos fazem acreditar no que vemos. Temos algo programado para sobreviver, perceber um leão e saber que precisamos correr e coisas assim. No entanto, quando você coloca um leão na tela, em tamanho real, você sabe que o leão não está ali. Mas, às vezes, parece que a mente não sabe. Daí tanta manipulação e desentendimento nesse mundo atual de propagação de imagens. Meus trabalhos brincam com a percepção do real.
Em geral, acredito que suas obras possuem uma sensibilidade bem universal. Há uma economia nos cenários e até mesmo nas roupas. É difícil identificar onde as fotos foram tiradas. Claramente, o corpo é feminino e, com o tempo, percebe-se que é o seu, mas há uma universalidade. Até na ausência de texto ou palavras. Isso é intencional ou uma consequência?
Eu não tinha pensado muito nessa ideia de universal, mas, sim, em uma ideia de neutro. Embora eu ache que não existe um neutro (risos). Sei que eu não quero chamar atenção para as roupas que estou usando ou para mim mesma. Me interessa mais quando meu rosto não aparece, apesar de ser difícil conseguir isso. Tenho interesse em falar do corpo em geral, logicamente o corpo da mulher. Eu acho que cada elemento adiciona outras camadas e muitas vezes confunde. Tenho um desejo, sim, de acessar o diverso e, portanto, procuro que as coisas sejam neutras. Por exemplo, a série de trabalhos que eu chamo de “Corte” é feita de duas formas: alguns trabalhos são neutros, com fundo branco, onde estou usando roupas mais casuais, sem estampas. E tem outros que foram fotografados na casa da minha avó em Petrópolis, em um ambiente com cortinas estampadas e móveis antigos. Eu estou usando uma saia de veludo preto e uma blusa de renda. É uma casa muito antiga, que eu conheço muito, que carrega muita informação. Então as fotos falam também de tradição, de família, de uma cultura, da mulher e das regras e, enfim, eu acho que aquele ambiente traz tudo isso, então resolvi fotografar lá. Porque essa estética e seus símbolos me interessam bastante. Mas é o único trabalho que eu tenho assim. É algo que fiz bem específico, tem a ver comigo, com a minha história. Em geral, eu busco o neutro, porque assim posso falar do corte, do corpo, do movimento e de coisas muito básicas e ao mesmo tempo muito importantes, que dizem respeito à vida e à experiência de quase todos. Daí eu não estou falando só de mim. Se eu coloco um vestido de tafetá, por exemplo, eu já mudo completamente o sentido do que é mais básico. Eu acho que cada elemento que compõe o trabalho pode interferir muito. Como a música, por exemplo. Quase nenhum vídeo meu tem música ou trilha. Geralmente uso o som do ambiente, do que está acontecendo no momento mesmo. Eu acho que isso se conecta também com a questão de eu não procurar uma interpretação. Eu não busco interpretar, pois não tem a ver com o que eu quero dizer. Eu busco executar uma ação com o propósito de fazer a ideia funcionar. É mais direto ao ponto. Se eu pegar um vídeo meu e colocar um som ou uma trilha sonora, precisa ser algo que faça um sentido naquele contexto. No trabalho dos trilhos, eu uso essas roupas casuais e falo da interação da imagem com o movimento da tela. Falando de movimento e da percepção, não faz sentido para mim ter alguma roupa que simboliza uma terceira coisa. Apesar de que a calça jeans também simboliza algo (risos).
Vejo que várias de suas obras apresentam uma ruptura, e toda essa economia de informação, essa neutralidade, ela traz realmente um destaque para essa ruptura, que às vezes é agressiva, como no fogo, mas também uma ruptura de movimento, como em Movimento². Aqui, buscamos uma ruptura entre a expectativa daquela imagem inerte na tela e o movimento que ela provoca no espaço. Pode falar um pouco mais sobre essa ruptura no seu trabalho? Você considera isso um aspecto importante?
Sim, eu penso e pesquisei um pouco sobre o termo “iconoclastia”, que é essa ideia de destruir imagens, para não deixar rastros. No entanto, a busca pela destruição da imagem sempre gerou novas imagens. Por exemplo quando os católicos chegaram às Américas, buscaram destruir tudo que simbolizava religiões e cultura originária para reduzir seu poder. No entanto, o resultado disso foi a criação de sincretismo, imagens híbridas, misturas culturais e por aí vai. Acho que tem isso no meu trabalho. De destruir para criar algo novo. Eu tenho algo bem radical de destruição e um certo impulso violento. Nas séries “Corte” e “Fogo” e no vídeo “Derrube”, isso é bem presente. “Derrube” é um trabalho mais antigo, em que eu vou quebrando uma parede onde minha imagem está projetada. Dessa forma, minha imagem acaba sumindo. Assim, esses trabalhos falam de violência, de ruptura, no sentido de acabar com aquela aparência, propõem destruir, cortar, queimar minha própria imagem. Mas também falam de questionar o que está visível e de criação de algo novo. De abrir espaço para outras imagens e outras realidades.
Sim. Seus trabalhos lidam bastante com essa expectativa do olhar, lidando com o que o olho vê e a expectativa que temos da imagem que estamos confrontando.
É uma sobreposição de coisas. Mistura uma reação biológica que nos faz ver as coisas de certa forma, mais intuitivamente, com o contexto social, cultural e político em que cada um está inserido, que também define nossa percepção e/ou nos permite questioná-la.
Entrevista realizada em 21 de novembro de 2023 remotamente via Zoom