Matheus Rocha Pitta
As esculturas, fotografias e filmes de Matheus Rocha Pitta (1980, Tiradentes) desenterram gestos, rituais e narrativas esquecidas que expõem, sob uma nova luz, questões contemporâneas, como as mudanças climáticas, a história colonial brasileira ou os regimes opressivos de signos. Um vocabulário de gestos, vínculos entre linguagem e corpo, é disponibilizado. O movimento engendrado pelo encontro do público com suas obras tem implicações éticas de longo alcance. Seu trabalho foi exibido nas Bienais de São Paulo (2010), Taipei (2014) e Cuenca (2018) e em instituições como Fondazione Morra-Greco, Nápoles (2013), Castello di Rivoli, Turim (2017), e Kunstverein, Hamburgo (2020), entre outras. Vive e trabalha em Berlim. Para conhecer melhor a prática artística de Matheus Rocha Pitta, confira a entrevista:
Matheus, muito obrigado por aceitar passar esse tempo conosco e falar um pouco sobre você e sua carreira como artista. Para começar, gostaria que se apresentasse da forma que achar melhor. Pode compartilhar qualquer informação que considerar relevante, uma breve introdução para aqueles que ainda não o conhecem.
Meu nome é Matheus Rocha Pitta. Eu me considero um escultor, embora eu faça muitas outras coisas além da técnica de escultura. Mas é na escultura onde consigo me definir, e dizer isso também é um pouco provocativo. Eu nasci em Tiradentes, Minas Gerais, em 1980, onde passei minha infância. Tiradentes é uma cidade bastante particular, inclusive dentro da história do Brasil, mas demorou bastante tempo para eu entender como isso faz parte da minha formação. Minha carreira começou no Rio de Janeiro, onde fui morar para fazer a faculdade. Comecei como fotógrafo e experimentei com vídeo, instalação e escultura. Desde 2016, moro em Berlim, mas continuo indo ao Brasil para trabalhar. Enfim, esse é um breve resumo da minha vida.
É interessante ouvir que você se considera um escultor. Pode nos contar um pouco mais sobre isso? Por que escolheu a escultura? Você mencionou que é um pouco provocativo, por quê?
Porque, da mesma maneira como eu penso a fotografia – digamos que ela seja escultórica no sentido de que a escultura é uma relação entre as coisas –, a escultura cria uma relação de forças entre corpos. É um conceito muito mais elástico do que a pintura, por exemplo. Instalação eu acho um pouco insuficiente, mas eu gosto muito da ideia da escultura de juntar duas coisas que não convivem bem, criando uma relação simplesmente ao movê-las. Não é a escultura no sentido clássico do bloco de mármore no qual você vê uma coisa, esculpe, tira, não tira. A escultura está mais no que sobra das atividades, nos processos que ocorrem na vida, nos processos biológicos, nos processos econômicos. Todos eles têm um caráter escultórico de produzir coisas.
Quando você começa a pensar nisso, é uma ferramenta muito interessante e provocativa, no sentido de aumentar nosso conceito do que seja uma arte tridimensional. Ela não é só um objeto em um pedestal. Ela está no mundo e é formada por tensões que estão aí. É onde me sinto mais confortável para dizer o que faço.
Considerando-o um escultor e partindo do que acabou de explicar, poderia falar um pouco mais sobre as suas técnicas e seus materiais? Como você dá forma às suas esculturas ou as desenvolve? De forma geral, como você aborda esses processos?
Comecei trabalhando com fotografia e uma das coisas que herdei nesses anos é essa liberdade da fotografia, em que você se apropria de tudo. Você aponta a câmera para alguma coisa e fotografa. Na maioria das vezes, eu sempre trabalho com um material que já existe, raramente começo um processo do zero. Eu pego uma coisa que já existe e a movo para outro lugar. Gosto muito de trabalhar com comida; embora seja difícil, é superinteressante. Trabalho também com cimento, algo que muita gente conhece bem. Descobri uma técnica enquanto fotografava para um trabalho em um cemitério de Belo Horizonte onde, além da opção do túmulo de mármore e granito, há os túmulos mais baratos, feitos de alvenaria com paredes de tijolo. A tampa do túmulo, a lápide, é uma laje de concreto feita no próprio cemitério por razões econômicas, pois, por ser produzida no local, não é necessário transportá-la, reduzindo custos. Ela é feita de uma fôrma de metal que não tem fundo, e para isolar o concreto quando está molhado, evitando assim que grude no chão, usam folhas de jornal. No dia seguinte, quando a laje seca e endurece, essa folha fica presa na laje e vai para a parte interior do túmulo. Ou seja, o morto tem algo para ler (risos). Eu já tinha uma coleção de recortes de jornal sobre assuntos que me interessavam muito. Descobri várias coisas com essa técnica e fui refinando o processo, mas basicamente o núcleo dela está ali. É uma técnica popular e superbarata. É muito interessante, pois, de um lado, há o contexto funerário, algo quase universal, que começou como arte funerária. Ao mesmo tempo, tem a questão da pobreza, da ausência de meios e de como lidar com isso. São dois eixos que são superimportantes no meu trabalho: um eixo funerário, que pode ser traduzido em um eixo histórico, memorialista, relacionado à marcação do tempo, e o outro eixo, relativo ao lugar de onde eu venho, que é um país pobre, onde estamos acostumados a lidar com o mínimo e desse mínimo fazer uma imagem, tirar leite de pedra, por exemplo, que é um trabalho que já fiz. Esse lado da pobreza é interessante porque questiona um pouco as nossas noções do que é bom e do que é ruim. É uma forma de provocar uma reflexão sobre o estatuto material da arte e também de democratizá-la, em certa medida.
Quando falamos de escultura clássica, automaticamente a relacionamos à ideia do mármore, de usar um material já raro para produzir algo ainda mais raro, elevando o que já é elevado. O seu interesse em lidar com materiais considerados não tradicionais quando se pensa em escultura vai além do cimento?
Além do cimento, sim. Meu trabalho envolve comida, por exemplo. Falando sobre valor, se um artista gasta cinquenta mil reais para comprar um bloco de mármore, ninguém vai considerar isso um desperdício, embora esse bloco de mármore seja usado para criar uma escultura, algo totalmente improdutivo. Se você gasta esse mesmo dinheiro com leite, e não o utiliza como alimento, isso vira um pecado, é quase ofensivo. Porque o valor da comida não é apenas o seu valor monetário, mas também o seu valor de uso. Destruir uma quantidade absurda de comida, por exemplo, é algo que vai causar repulsa imediata em todos, sem necessidade de muita explicação. E isso é muito interessante. Por que sentimos isso com a comida e não com uma pedra de mármore? Uma das coisas mais interessantes de trabalhar com comida é que você tem uma resposta imediata das pessoas em relação ao valor. Para todos, a comida tem valor. Quando trabalho com comida, não é sobre decorá-la, como em um restaurante luxuoso, usando ingredientes raros para montar um prato, mas sim sobre criar um jeito de garantir a circulação da comida para que todos possam ser atendidos. Quando você converte a estrutura em comida, que pode ser consumida, surgem problemas muito interessantes que precisam ser resolvidos, como a reposição constante. Isso acaba envolvendo todos de uma maneira muito legal, porque o valor não é abstrato, e sim muito concreto.
E o alimento é uma das poucas coisas igualmente necessárias. Todo mundo precisa comer, todo mundo tem fome.
Sim. Por exemplo, eu já servi publicamente a Sopa de pedra duas vezes. Uma das performances foi no Rio de Janeiro; nela, a escultura deve ser dividida na rua, como na lenda da sopa de pedra, e aberta para todos. Isso faz parte da história. Na primeira vez que fiz, 80% das pessoas eram do mundo da arte, mas 20% eram pessoas que estavam no centro do Rio e se sentaram para tomar sopa. Na segunda vez, foi muito engraçado porque foi mais escalonado. Teve gente que foi nessa edição em Porto Alegre, no inverno, quando estava super frio, e não queria tomar sopa, mas os moradores de rua não se importaram com as pedras e queriam tomar a sopa. O trabalho se insere nessas divisões sociais que já existem e começa a diagnosticá-las.
Como foi o trabalho para divulgar a performance sem criar distanciamento a ponto de os moradores de rua não se sentirem à vontade para participar?
A performance era atrás do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro), no Rio, em uma praça bastante acolhedora, pequenininha. Foi em um horário em que já não tinha muita gente passando na rua, só havia mais moradores de rua mesmo, e criamos uma situação espacialmente convidativa na escadaria do IFCS. Limpamos a escadaria e a cobrimos de papelão. Era uma coisa supersimples e humilde, montamos um buffet de uma maneira absolutamente tranquila. E todo mundo ficou à vontade. Nas fotos e vídeos, é possível ver que conseguimos instaurar uma atmosfera em volta da sopa. E isso é algo muito interessante da comida. Normalmente, as pessoas da arte não estariam ali tomando uma sopa servida na rua. E isso cria uma ponte para entendermos a questão da fome de uma maneira muito tranquila, embora seja um assunto superpesado. A sopa tem esse elemento, pois metade dela é feita de pedra. Ao terminar de comer, o prato ainda parece cheio. E fica difícil comer, pois está pesado, a colher bate nas pedras fazendo barulho. É interessante como isso cria uma gravidade quase cerimonial em torno do ato de comer. Assim, a arte consegue abordar a questão da fome, mesmo para aqueles que nunca passaram fome. Pelo menos é nisso que eu gostaria de acreditar. Sopa de pedra é uma receita de sopa, supersimples, com quatro ingredientes: cenoura, batata, alho e cebola. O caldo servimos com pão, e os quatro ingredientes são esculpidos em pedra-sabão. É uma escultura em pedra no sentido mais básico. No entanto, a escultura precisa acontecer, pois ela se divide entre a parte que é pedra e a parte que é vida. Então, trata-se mais de tirar o pedestal da escultura de pedra e levá-la para a vida real, para o campo de relações do qual o pedestal e o cubo branco a retiram. Ao fazer isso, surge um conjunto de tensões que a escultura começa a esculpir e exibir.
Você começa a entender a escultura não só como essa coisa de esculpir o material, mas as nossas relações com o material, as relações sociais com o material, relações da cidade com o material. E essas relações são muito materiais, no sentido de que também criam coisas. Se forem excludentes, elas criam muros, barreiras e cercas.
É um pouco por isso que eu gosto de usar a escultura. Trabalho com coisas que têm uma essência escultórica primitiva. A diferença é que a aplico a outros campos. A escultura não se limita à pedra. Ela só acaba quando o prato está vazio. Antes de ser servida, ela tem um significado; quando é servida, enquanto você come com as pedras dentro, tem outro; quando o prato está vazio, só restam as pedras, então ela tem um terceiro significado, e um quarto, quando as pedras são devolvidas, pois devem ser usadas para servir outra pessoa. Esse deslocamento desses materiais revela relações que também são escultóricas.
Onde você costuma encontrar inspiração para lidar com temas delicados e reais, como a fome e a falta de recursos, e de que forma negocia essas questões nas suas obras?
São assuntos delicados, mas hoje em dia existe um certo tabu em falar sobre pobreza que me incomoda muito. Parece que ser pobre é considerado um pecado ou algo errado. Existe toda uma tradição do pensamento econômico que hoje em dia é ignorada. Eu acho isso muito ruim. Embora seja um assunto delicado, ninguém precisa se sentir ofendido por passar fome. Todo mundo passa fome. A fome é algo que nos acompanha o dia todo: acordamos com fome, sentimos fome na hora do almoço e jantar. Não adianta tentarmos ignorar essa realidade, precisamos confrontá-la do jeito que é. Devemos ter cuidado para não negar a realidade com um excesso de cuidado, fingindo que ela não existe. Eu vou dar um exemplo de uma pesquisa que eu estou fazendo sobre o universo das fake news, como essas fazendas de clique, que é um universo de emprego totalmente precarizado, e tem um cientista social falando disso que está preocupado em não ofender os trabalhadores. Desculpa, o cara já está fudidaço, entendeu? É importante entender o que está acontecendo e se preocupar em compreender as relações. As relações de opressão são reais e não podemos ignorá-las se quisermos resolver o problema. O Brasil voltou ao mapa da fome após quatro anos de governo Bolsonaro. Não estou me referindo a uma pessoa específica, mas a um problema que precisa ser abordado. Isso também está relacionado à forma como os alimentos são produzidos, que existe desde a colonização. Se fingirmos que os problemas não existem, vamos viver em uma ilusão, na ilha da fantasia. Acredito que a arte tem um propósito diferente. Ela serve para nos ajudar a escapar da realidade quando ela se torna muito dura, mas também pode nos ajudar a entendê-la melhor. Na Sopa de pedra, tudo é feito com muito cuidado. A pedra-sabão é usada para fazer panelas, por exemplo, e vem de Minas Gerais, onde eu nasci. O modo como servimos a comida cria um espaço acolhedor. Meu trabalho lida com esses assuntos, embora não os tematize diretamente. Eu não estou dando informação sobre a fome, estou fazendo com que as pessoas tenham experiências da fome. Não é fome porque é simples e barato, e sim porque tem uma pedra ali dentro. O prato está cheio, mas metade dele não é comestível, representa uma coisa de comer. Busco lidar com coisas superpesadas com delicadeza, e isso se aplica também ao nível material. Quando trabalho com cimento e papel, são dois materiais superincongruentes. O cimento tem algo de muito bruto, e a mão que trabalha nisso precisa ser tanto bruta quanto delicada para que o papel sobreviva ali dentro. Uma coisa interessante em trabalhar com comida é sua universalidade. Ninguém pode se declarar dono desse assunto. Como artista, não acho que tenho que representar ninguém. Acho essa questão de escolher artistas como representantes de uma etnia ou povo um tanto complicada e perigosa. A arte é um termo de experimentação e, politicamente, a representação está em crise há muito tempo. A democracia procura maneiras de se manter viva após a representação, mas essa discussão foi interrompida completamente, porque a representação não funciona de forma adequada e nunca será justa. Eu não acho justo colocar a responsabilidade disso nas costas do artista. A arte é uma posição de experimentação que envolve exposição existencial, que é delicada. No entanto, como artistas, conseguimos lidar com isso e nos adaptar.
E você mencionou no começo que gosta muito de trabalhar com a ideia de pegar o que já existe e colocar em outro lugar para ver como aquilo se comporta em um ambiente diferente. Isso contrasta bastante com a ideia de representatividade, pois, como você disse, é um terreno de experimentação e, para experimentar, é preciso haver esse deslocamento, essa mudança de posição… É preciso haver uma mudança de assuntos, de coisas.
É a “licença poética”, que permite liberdade para experimentar coisas de que não se sabe. Assim, o artista nunca será uma autoridade absoluta.
Isso é interessante. A licença poética é a base da arte e tem sido menos discutida ultimamente, porque temos nos concentrado mais em tentar enquadrar o artista e sua prática em uma definição, em vez de permitir a liberdade poética.
Eu vejo meu trabalho influenciando muita gente, às vezes acho ruim, às vezes fico orgulhoso. Mas eu não faço arte no sentido de querer ser um modelo de conduta, nada disso. Faço arte para entender o mundo em que eu vivo. E é um mundo em que fica cada dia mais difícil de viver. Coisas que há 20 anos, quando eu era adolescente, eu jamais imaginaria que aconteceriam, aconteceram. Mas ainda é um mundo que eu amo.
A época em que eu vivo é a única época que existe para eu viver, e é sobre essa época que vou me debruçar. E isso é outra coisa de que sinto falta hoje em dia. Um pouco diferente de quando comecei, que é uma certa falta de atenção ao presente. Embora a questão histórica seja importante no meu trabalho, eu a abordo para entender o presente. Embora a questão histórica seja importante no meu trabalho, eu a abordo para entender o presente. Às vezes, sinto que estamos vivendo em um presente fechado, sem muitas perspectivas, no sentido de que olhar para o passado não muda o presente. Muitas coisas são aceitas ou vividas como naturais, mas na verdade são históricas e construídas. Vivemos em um regime cada vez mais brutal de expropriação econômica e perda de direitos dos trabalhadores, o que só foi ampliado com a digitalização e deve piorar ainda mais. Por exemplo, presto muita atenção em pesquisadores de São Paulo que estudam o bolsonarismo, pois são muito interessantes. A figura do microempreendedor é um mito inventado. As pessoas acreditam que são microempreendedoras, mas na verdade estão sendo simplesmente exploradas. Mas há uma ilusão de que ela [a pessoa] faz parte de uma classe. Por exemplo, é interessante entender como essas relações de opressão econômica ocorrem hoje em dia, elas mudaram e se relacionam muito com a urbanização e com toda a tecnologia digital, que não existia quando eu era criança, isso é algo novo. Devemos ter liberdade para falar disso e fazer críticas sem ofender. Porque as pessoas dizem que se aceita qualquer coisa, todo mundo aceita qualquer coisa, mas não é sobre isso. Estamos falando sobre como entender, resistir e tentar mudar. Existe um conformismo até no eixo em que a política está sendo julgada hoje, que é um eixo moralista, de dizer como uma pessoa é virtuosa. O indivíduo sonega imposto e faz uma caridadezinha. Isso é muito pobre no sentido ruim da palavra. A política está sendo limitada por coisas que são claramente conformistas, aceitando uma realidade que é apresentada como natural. A arte e os artistas trabalham com imagens, mitos e coisas fora da realidade. Aquilo de que estamos falando aqui, por exemplo, sobre a ideia do microempreendedor, é concretamente uma fantasia, assim como algo que algum artista cria. É nesse tipo de coisa que é interessante a arte ser política, a arte é revelar as nossas fantasias. E como essas fantasias têm um fundo político muito grande, como a gente vai conseguir fazer algum tipo de pedagogia por meio da sublimação? Não adianta fazer pedagogia dizendo o quão legais somos, que gostamos de índios, que somos benevolentes. É necessário desmistificar a atitude paternalista, que é a coisa mais patriarcal que existe. É você passar a mão na cabeça e falar: “ah, tadinho”, é você colocar o outro “amorosamente” numa posição inferior. Fala-se muito sobre o patriarcado, mas ninguém fala da atitude paternalista. Uma coisa que eu considero extremamente importante mencionar é a questão da paternalização do público. Isso ocorre, por exemplo, durante uma exposição, quando se diz: “isso é muito complicado, ninguém vai entender”. Ao fazer isso, você está assumindo que o outro tem uma deficiência e está adotando uma posição paternalista, como se o público fosse composto por crianças. Atualmente, há muitos termos em circulação que acabam perdendo seu significado original. É importante entender que, muitas vezes, agimos de forma inconscientemente paternalista. Se não reconhecermos isso, nunca conseguiremos nos livrar desses padrões. É um terreno delicado e com o qual é difícil lidar, mas é preciso ter leveza e continuar a desenvolver um olhar crítico para o mundo, com amor. A crítica construtiva não precisa ser algo amargo e negativo. O amor pode ser crítico, construtivo.
E é interessante pensar como o campo da arte pode ser o melhor ambiente para discutir tais temas, para que esses tópicos não sejam necessariamente resolvidos, e sim observados, questionados e analisados.
Não estamos aqui para resolver as coisas, e sim para trazer uma nova perspectiva sobre o problema. Ainda bem que é assim, porque a função dos artistas é criar arte, e não governar o mundo. Não inventa, gente (risos). Mas a arte é isso. É criar um espaço, uma atmosfera em que possamos falar das coisas e entendê-las sob uma perspectiva diferente. Porque, muitas vezes, a resolução do problema envolve apenas essa mudança de perspectiva. A arte é muito útil nisso. Não é sobre você mergulhar em você, mas sobre sair de você e entrar em outro mundo. É o que eu acho mais legal, tanto em ser artista quanto em gostar de arte. De ir ao cinema, ler um livro, ir a uma exposição.
Matheus, como minha última pergunta, gostaria que você compartilhasse conosco os principais desafios, ou uma situação desafiadora, que enfrentou ao longo de sua carreira.
É sempre um desafio criar uma coisa que ainda não existe e convencer alguém de que aquilo que ainda não existe será legal (risos). Mas depois de uns 10 anos fazendo arte, comecei a entender que tinha um vocabulário e fiquei mais à vontade. O processo de criação começou a acontecer de maneira mais fluida. Hoje em dia, por morar em Berlim, comecei a perceber que a recepção, principalmente desse trabalho de que falamos sobre fome e comida, é completamente diferente aqui. Por exemplo, eu recebi uma visita no meu estúdio de um grupo de diretores de instituições aqui de Berlim no ano passado. Eu tinha acabado de chegar do Brasil e de concluir Um campo da fome (2019/2022, Usina de Arte, Pernambuco). Eu estava absolutamente deslumbrado com a coisa e falei: “ah, vai ser uma visita rápida, então vou aproveitar que esse trabalho está fresquinho e vou imprimir as fotos”. Mostrei para todo mundo e, em seguida, alguém perguntou: “Matheus, é … feito de chocolate?” Isso foi depois de eu ter explicado tudo (risos). Para mim, é um desafio apresentar o problema da fome para um público que não a vivencia. No Brasil, ninguém jamais confundiu barro com chocolate. Ao olhar para esse trabalho, estamos lidando com uma tradição de trabalhos que falam sobre o sertão, que têm todo um imaginário em que uma tradição de trabalhos se inscreve. Aqui não temos isso. Também percebi, com outro trabalho que fiz em Hamburgo – As sirenes do toque de recolher, que são figuras feitas a partir de correntes e que dialogam com a opressão e falta de liberdade —, que profissionais da arte acharam que era um trabalho sobre sadomasoquismo, sobre o universo do prazer. E na verdade essa era a última coisa que eu buscava comunicar. Então, é um desafio apresentar questões que me interessam e me movem a um público que não tem muita consciência devido aos privilégios acumulados há muito tempo.
No Brasil, a fome frequentemente se manifesta em regiões áridas, secas e extremamente quentes, enquanto na Europa ocorre o contrário, ela aparece em regiões frias. Fico pensando em Os comedores de batatas, de Van Gogh, que retrata a miséria no inverno… É incrível como ele conseguiu, por meio da arte, transmitir a sensação de fome. E por meio disso conseguimos notar esse contraste entre a percepção da fome no Brasil e na Europa, e qual o imaginário que recorda um ou outro sobre a fome.
Sim, há diferenças culturais, mas acredito que há algo além disso. Acho que atualmente não há mais “comedores de batata” ou, se há, estão muito escondidos. É algo quase existencial. As pessoas não conseguem entender e não têm noção do que estão falando. A fome no Brasil é muito evidente e está estampada na cara de todo mundo. Por isso, acho um desafio conseguir fazer um trabalho que as pessoas não vejam apenas como “chocolate”. Esse é o desafio, além da barreira cultural. Conseguir implicar uma pessoa de barriga cheia. E eu me coloco nesse desafio porque isso é uma coisa interessante. Essa incompreensão é séria. Não adianta apenas falar, é preciso começar a levar a sério essa falta de entendimento mútuo. Eu também posso estar cego para algumas coisas aqui. Da mesma forma, eles também podem não ver as coisas do meu lado. Pode haver uma falta de visão mútua, pode haver alguma coisa aqui que estamos deixando passar.
Exatamente. Como você mencionou anteriormente, sua investigação para diminuir a miopia cultural é muito interessante. É um caminho que só pode ser desdobrado por meio da exposição a duas, três, quatro ou cinco visões. Requer, portanto, uma pluralidade de perspectivas.
Porque é uma coisa que ainda vai acontecer muito. Nossa perspectiva do futuro, com a mudança climática, não tem graça nenhuma. Então, toda essa rede de produção de comida global, muito baseada em monocultura, vai ser um pouco desmontada com essa mudança climática de maneiras que ainda não conhecemos. A regularidade do clima está acabando, então a regularidade da colheita vai acabar também. Temos diante de nós, talvez na próxima geração (talvez não vejamos isso), um desastre de primeira ordem. A maneira como lidamos com a distribuição de alimentos terá que sofrer uma mudança radical, que vai além do conteúdo que você come. A mudança deve ser tanto na produção quanto na distribuição da comida. A monocultura existe quando você começa a pensar na comida como mercadoria, na acumulação etc. Isso é uma coisa muito recente na história da humanidade, tem apenas 200-300 anos. Antigamente, as pessoas só guardavam e acumulavam grãos para o inverno ou para eventuais secas, mas a agricultura moderna, que está associada à colonização e à escravidão, mudou tudo isso. O uso da terra agora é mecanizado, cientificizado e superextrativista. No futuro, precisaremos mudar essa perspectiva se quisermos garantir comida para todos.
Entrevista realizada em 19 de abril de 2023 remotamente via Zoom
concreto, vidro, plásticos, recortes de jornais, seixos, batatas
4 m x 2,5 x 0,8 m (altura)
2017/2018
Vista da Exposicão Caminho da Pedra, Espaço Cultural BNDES, Rio de Janeiro 2018
Legumes esculpidos em pedra sabão de dimensões variáveis