Ana Hupe
Graduada em jornalismo e doutora em artes visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ana Hupe (1983, Rio de Janeiro) é uma artista multifacetada que trabalha com pesquisa artística, contra-arquivos, instalações narrativas, gravuras, vídeo e outras mídias. Nesta entrevista, Hupe nos leva a encontros, eventos e histórias que moldaram sua jornada artística e nos conta como se desdobra sua pesquisa até encontrar a materialidade dessas histórias. Confira:
Ana, obrigado por aceitar nosso convite. É um prazer conversar com você. Gostaria que começássemos com uma breve apresentação sua, contando qualquer informação que considere relevante para alguém que ainda não conhece sua prática e sua arte.
Já começa com um desafio (risos). Parece uma pergunta simples, mas é difícil de resumir a biografia. Para começar, eu não estudei arte, mas, sim, jornalismo. Eu queria trabalhar com texto desde que entrei na faculdade. No entanto, durante a faculdade, comecei a trabalhar com cinema para conseguir trabalhar e estudar ao mesmo tempo no Rio. Trabalhei como assistente de direção e comecei a fazer roteiros institucionais e comerciais. Percebi que tudo era muito briefado e não havia muito espaço para a elaboração criativa, que era o que eu realmente queria fazer ao escrever, apesar de gostar do jornalismo investigativo, que de certa forma ainda está presente no meu trabalho atualmente. Quando terminei a faculdade, no início dos anos 2000, tinha 22 anos e decidi tentar morar em Berlim. Eu já tinha morado na Alemanha aos 15 anos, quando fiz intercâmbio em uma cidadezinha perto de Stuttgart, e fiquei encantada pelo mistério daquilo que era tão diferente para mim. Foi uma experiência dolorosa para uma adolescente do Rio de Janeiro que estava descobrindo a vida de repente chegar a uma cidadezinha no inverno da Alemanha, onde a vida era totalmente outra. Foi uma diferença dura, mas fui eu que escolhi passar por isso e, depois de passada a experiência, eu passei a gostar daquilo. Aprendemos com os sofrimentos também. Quando passei por Berlim pela primeira vez, pensei “aqui, acho que dá para morar” e fiquei com essa fagulha na mente. Quando terminei a faculdade, eu vim com uma das minhas irmãs, cinco anos mais nova do que eu, que tinha acabado a escola e queria estudar na Alemanha. Como ela não tinha dinheiro, aproveitamos que eu tinha e fomos juntas. Contando assim, sem os detalhes de toda essa trama, parece que foi tudo fluido. Deixo aqui só um resumo para não estender demais a história. Morei por um ano e meio, entre 2006 e 2007, em Berlim. Foi uma experiência super difícil. Apesar de já trabalhar com cinema, as pessoas me ofereciam somente estágios não remunerados, eu era muito jovem para os padrões locais de trabalho. Então comecei a trabalhar em bares e fiz tantos jobs inimagináveis… não estava feliz. As coisas estavam tão visivelmente desencaminhadas que uma vez fui chamada para uma entrevista à qual me candidatei através dos classificados do jornal para trabalhar com um diretor de cinema iraniano. Cheguei lá super empolgada até descobrir que o diretor era cego. Hoje penso que poderia ter sido uma experiência incrível, mas, naquele momento, fiquei sem palavras. Queria continuar trabalhando com coisas de que eu gostasse. Morei com Alice Miceli, uma artista do Rio que morou em Berlim enquanto desenvolvia um projeto de pesquisa na área restrita de Chernobyl. Alice queria revelar a radioatividade do ar através da fotografia, então ela desenvolveu uma câmera de chumbo para conseguir fotografar esse invisível. Eu fiquei acompanhando o processo dela, e para mim foi uma introdução a essa gramática da arte contemporânea, na qual cada artista encontra seu próprio vocabulário. Inspirada por Alice, voltei para o Rio e comecei a fazer o curso do educador Charles Watson. Foi uma boa introdução imersiva, mas a pergunta sobre como ser artista sem ser herdeira tomava cada vez mais espaço. Eu consegui um trabalho na Fundação Roberto Marinho por um tempo, enquanto estudava para entrar no mestrado.
E me parece que, quando decidiu fazer esse curso, você já tinha decidido se tornar artista ou estava experimentando e querendo ver o que acontecia?
Eu estava experimentando. Comecei a experimentar primeiro com vídeo, já que eu tinha um pequeno conhecimento do cinema e da TV. Eu não sabia qual seria a minha linguagem, mas sabia que eu gostava de escrever e estava entre cinema e escrita. No Brasil, eu comecei a estudar muito para esse mestrado, pois reconheci que seria uma chance de fazer o que eu gosto. Me dediquei tanto que passei em primeiro lugar no mestrado da Uerj. E, na época, o primeiro lugar era o único com bolsa garantida pela Faperj – as outras bolsas eram da Capes. Fiz o mestrado com o poeta Roberto Correia dos Santos, que me reconectava com o texto. Comecei então a desenvolver meus primeiros trabalhos, que continuam comigo até hoje, por exemplo, o trabalho que fiz no final do mestrado, de uma tatuagem nas minhas costas.
É um texto que escrevi, depois apaguei as palavras e deixei só as pausas (vírgulas, pontos) como forma de manter o texto sempre atualizado, sempre aberto. E resolvi fazer a tatuagem simbolizando um casamento que eu fazia com as artes, um compromisso comigo mesma. A partir desse momento, comecei a experimentar trabalhar com o alfabeto da cidade, de escrever sem palavras, sempre tentando trazer o texto para o espaço. Foi durante o mestrado que consegui formatar essas ideias, e naquele momento estava muito influenciada por Sophie Calle, em realizar ações e depois escrever sobre elas. Foi quando visitei diversas pessoas desconhecidas em suas casas e fotografava seus porta-retratos. Depois, eu fiz um diário, uma instalação. Eram trabalhos bem experimentais de escrita – performance.
Durante sua pesquisa e vida como artista, quais foram os principais desafios que vivenciou ao longo da sua carreira e que gostaria de compartilhar?
Nada foi fácil. Eu já pensei em desistir muitas vezes, mas agora a maturidade traz um pouco mais de entendimento dos limites, de onde posso investir minha energia. Já fui muito além do meu limite por conta da arte. Grandes projetos, como “Leituras para mover o centro (2016)” no CCBB e “Mulheres do quarto mundo”, que eu fiz em Berlim e no Paço das Artes (MIS), em São Paulo, eram exposições grandes, com muita visibilidade, mas com poucos recursos financeiros e que requeriam muitas viagens. Foram momentos do impossível, conceber o projeto sem nenhuma estrutura financeira. Eu não tinha nem casa nessa época, pulava “nômade” de galho em galho, era entrega total. A exposição intitulada “Muito futuro por uma só memória”, em 2017, na Fundação Joaquim Nabuco, acho que foi meu maior desafio, no somatório daquele momento. Fui ao sertão do Brasil em busca da história de uma mulher chamada Dé (Maria Francisca da Conceição), que criou minha mãe, mas que não possuía nenhum documento ou registro civil. Sua identidade foi feita depois que ela já trabalhava para minha bisavó; não se sabia exatamente de onde ela vinha, apenas das coisas que ela contava. Eu recapitulei toda a história com minha tia-avó que mora em Recife e que agora vai completar 100 anos. Na época da entrevista, ela tinha 94. Fui para o sertão para tentar entender de onde veio Maria Francisca da Conceição, onde ela nasceu e qual teria sido a história dela até chegar à casa da minha bisavó — que morava na Zona da Mata — pedindo trabalho. E ela, enfim, virou parte da família. Essa coisa ambígua, bem colonial brasileira, especialmente no Nordeste, de ser parte da família, mas na verdade não ser. Todo mundo conta como se ela fosse, claro que era, porém morava no quarto de empregada. Ela nunca teve uma vida própria, nunca teve um namorado, uma família ou contou sobre seu passado. Essas histórias fazem parte da infância da minha mãe, que sempre a menciona. Fiquei intrigada, pensando sobre os traumas que essa mulher deve ter sofrido. E isso foi um disparate para fazer o projeto, que na verdade não é somente sobre a história dela, é a história de tantas Marias. Visitei a cidade onde ela nasceu, São José do Belmonte, que antes era formada por duas grandes fazendas. Na primeira fazenda, Malhada Grande, todos os trabalhadores eram chamados de “Conceição”, em referência ao nome do dono da fazenda, o que é um vestígio da escravidão. É possível que ela tenha fugido dessa fazenda. Conversei com as pessoas negras mais velhas da cidade – a senhora mais velha que encontrei, coincidência ou não, se chamava Margarida Maria da Conceição. Visitei também os quilombos próximos dali. Descobri um quilombo chamado Conceição das Criolas, criado no século XIX por sete mulheres que, assim como Maria Francisca, se chamavam Da Conceição. Fui destrinchando possíveis história do passado de Maria Francisca, preenchendo algumas lacunas na sua história com evidências. Foi uma pesquisa com muitas camadas, e tive que montar uma grande exposição com poucos recursos e pouco tempo, o que tornou tudo muito desafiador, sem falar da corda bamba que é apontar e confrontar o apartheid brasileiro a partir da história da própria família. Eu lembro que um dia antes da exposição tudo ainda estava em obras, havia fumaça no espaço expositivo, escadas no meio da sala, um verdadeiro caos um dia antes da abertura. Eu tive que sair correndo para comprar uma lâmpada no centro e me lembro que comecei a ter uma dor de cabeça, tipo uma enxaqueca, pela primeira vez, e sempre que eu estou estressada a dor volta no mesmo lugar. Foi naquele momento que algum parafuso soltou e que nasceu uma espécie de antena chamada burnout. É muita entrega nessas exposições grandes, e na hora me questionei se recebo de volta o que eu estou colocando de energia. Eu não quero ter que me rasgar em cinco para conseguir abrir uma exposição, não faz sentido. Desde então, penso todo dia em formas de trabalhar de maneira mais saudável. Escrever me traz um pouco dessa possibilidade.
Ana, conta para a gente sobre as suas técnicas e os materiais que utiliza. Como funciona, no seu caso, essa coleta de material e como isso se transforma no seu trabalho?
Eu não sou muito baseada em materialidade, eu trabalho com histórias. Em cada trabalho, eu penso em como formatar de um jeito que eu fale a mesma coisa através da matéria, no espaço. Como que eu conto essa história sem contar. Esse que é o desafio sempre. O OPAVIVARÁ, um coletivo de arte do Rio em que fiquei cinco anos e que foi a minha maior escola de arte, me ensinou sobre a potência dos encontros. A ideia da arte relacional consiste totalmente em conversar e colocar pessoas que não se encontrariam em contato, como a secretária de cultura da cidade sentada na mesa com um morador de rua. Aconteceu em uma das intervenções que fazíamos em espaço público. Fizemos uma cozinha na Praça Tiradentes (RJ), que os moradores de rua acabaram ocupando, ao lado das pessoas das artes. Foi a primeira vez que conversei com moradores de rua, numa certa horizontalidade temporária, cortando cebola, olhando e ouvindo as histórias. Isso foi o que ficou para mim do coletivo, além das amizades que viraram família. Em um certo ponto, tudo se tornou muito intenso, festivo demais, é tanto trabalho físico para cada produção! Em 2013, eu decidi que era o momento de sair e voltar para mim, me concentrar. Quando eu me mudei pra Alemanha em 2014, foi um turning point, pois mudei de país, de continente e também de foco no trabalho. Eu vim para fazer um ano de doutorado sanduíche e as desigualdades geopolíticas começaram a gritar para mim. Fiz essa mudança aos 31 anos, já tinha certa experiência de vida e de arte no Brasil e um entendimento sobre constituição social, cultural. Quando chego aqui, percebo que as pessoas me leem como latino-americana, eu não pensava muito sobre a minha origem. A ideia de fronteira geopolítica passou a ser uma questão direta na minha vida. Em 2014 e 2015, foi o momento da crise dos refugiados, que chegaram pelo Mediterrâneo em Lampedusa.
Para você, qual foi a principal diferença entre Rio e Berlim?
No Rio, o trabalho do OPAVIVARÁ sempre foi muito político. Sempre fomos muito atentos às questões de desigualdade, sobre onde estávamos circulando e colocando nosso trabalho, como o formatávamos para um espaço de arte institucional comercial e para um espaço público e como lidar com essas pessoas que faziam parte do trabalho e estavam em situações de vulnerabilidade. E quando cheguei aqui, sozinha, foi um confronto direto com esses números imensos de refugiados no jornal, chegando. Em 2013, tinha uma ocupação na Oranienplatz, em Kreuzberg, e eu morava do lado. Eu era muito recém-chegada, e não entendia na prática essa crise política direito. Mas esses números imensos no jornal me levaram à ilha de Lampedusa, ver o que estava acontecendo. É uma ilha mínima, turística, que fica mais perto da África do que da Europa. Eu cheguei em fevereiro e fiquei por duas semanas. Foi muito louco, pois durante esse tempo chegaram 1.200 imigrantes de barco que entraram pelo porto, e eu não vi nenhum. Eu estava na padaria, que era do lado do porto onde chegam os barcos. Tinha uma televisão ligada e passou no jornal que haviam chegado essas pessoas na noite anterior, ali do meu lado, e eu não vi nada. Essas pessoas vão direto para um campo de refugiados, onde ficam praticamente escondidas. É uma ilha que vive de turismo e pescaria, então ninguém queria falar sobre isso. Eu perguntava para as pessoas: “Onde é o campo? Onde ficam as pessoas que chegam de barco?”. E ninguém queria me falar. Um falava: “Ah, no topo da montanha”. Outro falava: “Ah, é ali no vale”. A ilha é muito pequena, eu dava a volta nela de bicicleta em um dia, e não conseguia descobrir onde era esse campo. Foi quando comecei a pensar nessas invisibilidades e em como formatá-las. Não era só a invisibilidade dessas pessoas, mas também de várias coisas que estavam acontecendo naquele espaço de terra onde viviam cinco mil habitantes. Havia um eletromagnetismo no ar super forte, devido aos radares de uma base militar americana, que depois passou a ser uma base militar da Itália, em 94. Eu comecei a pensar sobre todas essas invisibilidades nesse momento, e o trabalho feito em Lampedusa — que chama Blurred Borders (Bordas Borradas) — foi sobre isso. Enviei 55 cartões-postais anônimos com fotos da ilha para a ilha de volta, para todos os lugares: hotéis, supermercados, a casa onde eu tinha ficado hospedada. Mandei também mensagens poético-políticas em garrafas sobre a imigração ilegal das fronteiras e sobre questões que estavam presentes naquele momento, para mim, recém-chegada à Europa. Esse foi o primeiro trabalho que eu fiz depois de chegar a Berlim. Eu estava na classe da Hito Steyerl, na qual se discutia muito internet, controles invisíveis, e fiquei pensando sobre essas fibras ópticas no fundo do mar, conectando mundos, atravessando as fronteiras tão bem cartografadas, mas invisíveis na paisagem. A internet não é imaterial, temos essas fibras ópticas passando embaixo do oceano, e isso também é algo em disputa. Logo, não foram só essas invisibilidades dos corpos, mas tantas invisibilidades que aparentam ser imateriais e controlam nossos corpos. Em cada trabalho eu decido que material usar e qual a melhor forma de traduzir. Apesar de trabalhar com artistic research, acho muito chatas essas exposições super acadêmicas, às quais você vai e tem uma mesa com vários arquivos, documentos e um vídeo super documental explicando. É quase uma abertura de processo de investigação do artista. Eu trabalho pesquisando muito em arquivos, documentos, lendo e lecionando também, mas, ao formatar o trabalho para o espaço, gosto de um formato minimamente aberto para outros significados.
Que a pessoa se confronte com aquilo, que tenha uma bula, uma espécie de texto introdutório, um footnote (nota de rodapé), mas a pessoa ainda pode olhar o labirinto de cobre com uma pedrinha no meio e imaginar outras coisas e transportar para a própria vida. Ler isso no plano sensível, não só do racional. Isso, para mim é uma coisa importante, uma questão que está presente. Esse labirinto funcionou para mim um pouco como um resumo do projeto Footnotes to triangular cartographies, quando eu fui à Floresta Sagrada de Oxum-Oxobô, onde nasce o rio Oxum, em que esse orixá — ou a orixá — tão popular no Brasil e na Nigéria é o próprio rio. Eu estava lá e encontrei um livro num sebo em Ejigbo que ensinava iorubá para as crianças, mas não tinha nenhuma palavra. Fiquei analisando aqueles joguinhos de ensinar uma língua, e tinha um labirinto com um pintinho e, no centro dele, um milho. Eu falei “é perfeito esse labirinto como metáfora para essa investigação”, e fiz o labirinto de cobre, que é o elemento de Oxum, e coloquei a pedrinha do rio no meio. Está relacionado com essa busca pelas origens de tantas culturas africanas transportada pelo Atlântico forçosamente, que tanto influenciam a cultura brasileira, cubana, haitiana. Talvez esse seja um exemplo de como materializar as histórias.
Eu acho interessante essa pluralidade de técnicas e mídias que contam a mesma ou partes de uma história conjunta. Você toma essa liberdade de pegar histórias e traduzi-las de formas diferentes, ilustrando essas histórias não somente em uma obra única, mas em um grupo de obras representadas de formas diferentes, como no Footnotes, mas também em peças individuais.
Eu trabalho de forma instalativa e faço uma instalação que, na verdade, para mim, são várias narrativas que formam uma narrativa. Eu sempre penso em storytelling e até costumo dizer que faço instalações narrativas, porque, para mim, eu estou contando uma história. Talvez a pessoa não leia a história que eu quero contar, leia outra, mas eu estou propondo uma narrativa através da mistura de objetos, tentativas de escultura, fotografia ou imagem, que vêm do arquivo e não diretamente da fotografia que faço. Eu costumava ancorar-me no vídeo como contexto da instalação, que revela o que não estou revelando diretamente. Mas agora estou mais interessada em escrever. Eu adorei tanto fazer o livro Notas de rodapé para cartografias triangulares (da série “Processing Process”, da K. Verlag, Berlim). A linguagem com que eu mais tenho intimidade é a da escrita, é onde eu fico mais satisfeita e que me dá mais prazer. Eu fugi tanto das palavras por tanto tempo, tentando traduzir, trazê-las para o espaço, e agora eu estou querendo voltar um pouco para a página.
Para você, como foi esse processo de transformar esse conjunto de trabalhos no livro?
Quando eu fiz a exposição “Notas de rodapé para cartografias triangulares”, eu notei que a instalação e os trabalhos estavam lá, mas cada vez que levava as pessoas eu gostava de contar as histórias, as notas de rodapé de cada trabalho, que eu achava muito mais legais do que os trabalhos em si. Decidi então que precisava fazer um livro, que conseguiria contar essas histórias muito melhor do que a exposição sozinha. É um livro de processos. Enquanto conta o processo de construção do trabalho, mostra os detalhes, que dão uma ideia do que é o trabalho. Essa foi a ideia do livro: trazer essas histórias narradas que estavam por trás da pesquisa, mas que ao mesmo tempo são o trabalho em si.
Como leitor, o livro permite um acesso às obras com mais tranquilidade. Enquanto as exibições muitas vezes têm um aspecto de imediatismo, o livro permite uma digestão e um entendimento do trabalho por um período mais longo.
E, como tem muita história, é difícil você apreender tudo.
Eu acho essa memória do corpo no espaço super importante, é o que ainda me atrai nas artes visuais, porque você passa e aquilo fica com você. É uma experiência do corpo, é diferente só da experiência racional da leitura. Mas, ao mesmo tempo, o livro circula, e pode vir a fazer sentido na vida de alguém daqui a cinco anos, é um objeto que fica. A exposição tem curta durabilidade, e o livro você lê no seu próprio tempo, onde você quiser e em outros momentos da sua vida pode se confrontar de novo com aquilo.
No Footnotes você mostra que encontros inusitados não são tão surpreendentes quanto parecem. Como a conexão entre a Iemanjá do Brasil e a da África e sua relação com a lua Europa. Conta para a gente um pouco sobre como você encontra essas conexões?
Eu chamo de poética da sincronicidade. É um exercício de ver poesia no dia a dia mesmo, que, na verdade, já era um exercício meu como artista, enxergar além do que está se revelando racionalmente, e entender que era para ser, e não é algo trivial, está acontecendo por um motivo. É uma parte natural do meu desenvolvimento, minha forma de ver o mundo, que eu pratico, aprimoro e aperfeiçoo a cada vez. Trata-se de uma aproximação com a intuição. Estamos tão pautados pelo racionalismo que é um exercício contrassistêmico nos aproximarmos da intuição. Enquanto eu escrevia, conversava com pessoas da Nigéria, trabalhei durante dois anos fazendo videoconferências com a Jumoke Sanwo, que é uma artista de Lagos. Eu mostrava para ela os textos que trabalhavam com a ideia da poética da sincronicidade. E compreendi que, na verdade, a sincronicidade é parte da filosofia iorubá e também do candomblé. Ficar procurando significados, ter um sonho revelador que vira um guia de caminhos, prestar atenção ao que fala o oráculo, a sequência de números, cores, pessoas, encontros. Em resumo, enxergar o sagrado ou a poesia da coisa. Isso que eu achava que era arte é, na verdade, o sagrado iorubá também. Comecei a trabalhar de forma mais consciente com essa estética da sincronicidade, que é o tema principal do livro e do projeto. O projeto começou a tomar forma quando encontrei o Babá Joaquín, um sacerdote cubano de Oxum que mora em Berlim há quarenta anos. Nos conhecemos por acaso, em uma festa no terreiro em Berlim, onde ele estava vestido de amarelo, todo maravilhoso de Oxum. Quando em 2018 eu recebi um prêmio para fazer uma residência em Cuba, (da ArtRio), eu convidei o Babá Joaquín a tomar um café comigo. Nos encontramos e comecei a conversa falando sobre minha experiência na residência na Bahia, onde morei por dois meses ao lado de uma princesa e sacerdotisa de Oxum, que veio da Nigéria, de Osogbo. Então, ele olhou para mim e perguntou: “Qual o nome dela?”. E eu respondi: “É Adedoyin Olosun”. Ele ficou surpreso e disse “Ela me pediu em casamento em 89″. Eu estava em Berlim, encontrando um babá cubano, e descobrimos que tínhamos essa pessoa em comum na Nigéria. Ele só tinha estado uma vez na vida na África, no festival de Oxum em 1989. Ambos tinham 20 e poucos anos e ela pediu para se casar com ele. Nesse momento, eu disse: “Isso não é uma coincidência, não é uma coisa trivial”. Para mim, foi uma confirmação de que eu tinha realmente que continuar esse projeto. Preciso contar essas histórias em minhas mãos. Fomos à casa dele logo após o café para ver as fotos. Há até uma foto no livro deles em 1989, no Festival de Oxum. Os dois juntos eu chamo de minhas estrelas-guias. Foram muitas magias no caminho. Eu estava num sebo em Salvador — é como o livro termina — uma amiga que me levou; eu já estava terminando o livro nesse momento, em dezembro de 2021. O sebo se chamava “O Xangô de Xangai”, num prédio comercial. Eu dedilhava os livros nas estantes quando peguei um livro do Abdias Nascimento, Combate ao racismo. Abri na primeira página e vi uma dedicatória do próprio Abdias, de 1983 — o ano em que nasci — que dizia “Para Mãe Menininha, com Axé e Bênção de Oxum”. Essa bênção triangular através do livro do Abdias Nascimento, no final do livro, para continuar esses encontros potentes. Eu até escaneei a página do livro, porque o livreiro mesmo nem sabia que tinha essa dedicatória. Ele falou: “Isso aqui é um tesouro!”. Algumas vezes, nos deixamos levar por essa poética, vendo sinais em tudo. Mas alguns desses sinais são interessantes. Nesse projeto, eu deixo a minha perspectiva muito clara. Eu não era uma pessoa do Candomblé. Estou me referindo a uma cultura que não é diretamente minha, embora seja uma cultura popular muito presente no Brasil. Eu sempre tive muito cuidado, especialmente no início da pesquisa, para descobrir como devo escrever isso como uma pessoa de fora. Testemunhei muitos encontros históricos e pensei: “Preciso escrever sobre isso”. Conheci Adedoyin, a sacerdotisa descendente direta de Oxum no Brasil, na Bahia, e ela me levou para as casas mais tradicionais de Candomblé, para os terreiros mais antigos. Visitei a Casa Branca, o primeiro terreiro do Brasil com registro, de 1831, o Opô Afonjá e o Gantois, todos em encontros privados. Eu pude ver as famílias de cada casa com ela. Era comum as pessoas perguntarem sobre e tentarem conectar com uma África contemporânea, já que as relações do Brasil com a costa africana têm 200 ou 150 anos. As pessoas tinham curiosidade de entender as diferenças e as semelhanças em relação ao presente, onde houve afastamento. A fonte é a mesma, e eu testemunhava encontros que me faziam pensar: “Isso é história. Não é um mero detalhe, mas, sim, um fato relevante que deve ser documentado e escrito”. Eu recebia essas confirmações o tempo todo. Eu sabia que precisava aceitá-las e mergulhar nessas histórias, porque tinha uma responsabilidade nas mãos.
Entrevista realizada em 13 de abril de 2023 remotamente via Zoom