Gabriel Pessoto
Gabriel Pessoto (1993, Jundiaí) é um artista que vem ganhando destaque no mundo da arte contemporânea com sua abordagem única e inovadora em relação às técnicas tradicionais de tapeçaria. Seu trabalho é caracterizado pela maneira como ele combina o digital com a tradição têxtil. O trabalho de Pessoto encontra no digital uma infinita fonte de imagens: jpgs, pdfs, gifs que depois são transferidos para telas, tapeçarias e desenhos. Essa transferência, ainda, ocorre pela mão do artista e, nesse processo, as imagens são reinterpretadas. Em alguns casos, elas são representadas de forma reconhecível, em outros, a imagem “original” (um conceito que é constantemente desafiado em sua prática) torna-se outra, uma nova. Para conhecer melhor o Gabriel, confira a nossa entrevista:
Gabriel, é um prazer te entrevistar, obrigado por topar esse bate-papo! Se você puder se apresentar, falar seu nome, sua idade, ou qualquer outra característica que você ache importante.
Que legal estar aqui, estou animado! Eu sou o Gabriel Pessoto, tenho 29 anos, nasci em Jundiaí, interior de São Paulo, cresci em Porto Alegre, que foi onde eu estudei, e agora estou trabalhando em São Paulo, onde tenho o meu estúdio.
Conta para a gente um pouquinho das suas técnicas e dos materiais que você usa e de que você gosta.
Eu não penso tanto a partir de uma técnica e vou transitando por diferentes materialidades de acordo com a pesquisa. Na minha formação, eu passei por diferentes técnicas, então tive contato com vídeo, pintura, desenho e com gravura e daí eu fui depurando um pouco da minha pesquisa. O que tem feito mais sentido para mim hoje em dia é trabalhar com mídias eletrônicas, trabalhos digitais. Isso pode se manifestar enquanto vídeo, projeção, uma videoinstalação, materiais têxteis, sobretudo tapeçaria. E essa duplinha do eletrônico e do têxtil é o que está mais forte agora.
Inclusive, pensando numa relação entre ambos, embora sejam técnicas quase antagônicas – uma que vem de uma prática mais tradicional e outra mais atual, é uma mídia nova –, eu vejo que tem um contato muito grande entre elas do ponto de vista da materialidade dessa imagem, que é um código. Então, acho que é isso que mais me interessa no momento, o têxtil e as mídias eletrônicas.
Como foi para você navegar entre essas duas técnicas – têxtil e do eletrônico – que não recebem tanta atenção na faculdade de artes, que tendem a priorizar mídias mais clássicas, como pintura e escultura?
Eu tive acesso a essas técnicas mais tradicionais, mas o têxtil, de fato, nem foi tratado. Não tivemos, na formação, nenhuma atividade prática nesse sentido. E mesmo tendo alguma atenção para fotografia e vídeo, o digital também não era um foco do curso. Antes de eu passar pelo curso de artes visuais, que acabei não completando, eu me formei em cinema. Então, essa relação com a imagem digital vem dessa experiência de manipulação de imagens enquanto editor de vídeo. Esse é um dado interessante que eu tenho revisitado e do qual tenho pensado a respeito. Foi editando a imagem que eu comecei a expandir, a tentar entender o que tem por trás dessa trama digital e como diferentes câmeras geram diferentes características nessa imagem digital. Como que a resolução, o formato em que o vídeo é codificado e onde ele vai rodar são fatores que influem na visualidade e recepção desse material. Foi nessa formação de cinema que eu passei a me atentar a isso e me interessar pela questão da materialidade da imagem digital e perceber que ela tem muitos paralelos com a trama têxtil também.
E quando estudou cinema, você chegou a cobrir o time-based media ou somente o cinema clássico?
O curso era mais voltado para o entendimento clássico do cinema. Então passamos pela história do cinema tradicional e documentário. Era também uma formação que, de certa forma, nos preparava tecnicamente para que pudéssemos executar algumas funções, inclusive em outras áreas do audiovisual. Tem um festival em Porto Alegre, que se chama Cine Esquema Novo, que preenchia essa lacuna de repertório tanto de videoarte quanto de cinema experimental. É uma plataforma que exibe cinema expandido, da sala de cinema à instalação e performance. Esse contato me ajudou bastante a formar meu gosto e me fez perceber que aquilo me interessava. Quando comecei a frequentar esse festival, ficou nítido que o que realmente me interessava eram esses caminhos de experimentação formalista ou abordagens mais instalativas da imagem em movimento. Essas possibilidades me encantavam mais do que questões narrativas, que eu também aprecio, mas não é onde eu me sinto mais confortável para transitar com o meu trabalho autoral.
Onde você encontra inspiração?
Sempre gostei muito de olhar imagens e sempre tive esse fascínio retiniano de olhar essas imagens desde muito criança. A TV, que era esse objeto ligado na sala com imagens em movimento, era muito fascinante. Em mídias impressas – revistas, livros infantis ilustrados – era muito instigante o fato de que alguém havia criado aquelas imagens. Quando eu me pegava pensando sobre a autoria dessas ilustrações, ficava muito impactado pelo processo por trás daquilo e curioso a seu respeito. Eu nasci no começo dos anos 1990 e cresci ao longo dos anos 1990 e começo dos anos 2000, que foi um período em que eu pude observar um processo de digitalização da cultura muito acelerado. A mesma imagem foi transitando por diversas mídias, do VHS ao DVD, depois para o Blu-ray, por fim para os arquivos de alta resolução ou streamings. O mesmo processo de digitalização também afetou a fotografia e a produção amadora de imagens. Eu tive acesso à câmera analógica, mas muito rapidamente esse gesto de produzir uma foto migrou para uma câmera eletrônica e depois para o celular. Portanto, observar essas imagens transitando por tantas mídias e por tantas resoluções muito rapidamente me desperta muito interesse. E, colocando de uma maneira mais prática, temos a imagem digital da internet, esse acervo de imagens quase infinito. Muitas vezes são imagens amadoras, que as pessoas postam das suas intimidades, ou imagens que não têm autoria nítida. São coisas que estão ali, que ninguém sabe de onde vêm, para onde vão, pois estão hiperprocessadas. Em paralelo a isso, eu só fui ter uma formação mais organizada de história da arte quando adulto, pois eu não tive tanto acesso a esse campo durante a infância e a adolescência. Portanto, as aproximações com objetos estéticos se deram pelo contato com essas mídias de comunicação e entretenimento e, também, com itens de artesanato, objetos decorativos de casa, itens domésticos que eram muito produzidos pelas pessoas da minha família. Embora não tenha tido contato formal com história da arte ou um acesso a essas imagens “oficiais” durante a infância, eu tive uma formação muito rica de outras visualidades e de uma relação lúdica com essas imagens.
A minha inspiração vem desses lugares da internet, que é essa loucura de imagens amadoras, de imagens de toda espécie, e também dos objetos cotidianos, que são estéticos, mas não estão exatamente mediados pelo campo da arte. E o que tem em comum nessas duas imagens talvez seja um pouco desse aspecto do amador, tentando não ser pejorativo. Não são imagens pensadas com uma função definida, mas são feitas por algum gesto de cuidado, gosto ou desejo decorativo. Tem algo também que me interessa, pensando nessa questão do artesanato, que é a capacidade de codificação e reprodução de padrões e imagens. Elas costumam ter uma receita que vai passando de geração em geração, de manual em manual, e acabamos também perdendo o lastro de quem produziu esse ponto, gráfico, padrão, conjunto de pontos etc. Um outro ponto interessante de contato e aproximação entre o artesanato e a imagem digital é que mesmo os trabalhos manuais vêm se industrializando ou tendo sua imagem apropriada por processos maquínicos. Podemos observar em produtos de cama, mesa e banho produzidos em larga escala a permanência de alguns padrões visuais que eram comuns quando as peças eram manufaturadas. O padrão floral outrora bordado em ponto-cruz pode ser encontrado estampado em uma colcha ou lençol. Então, esse trânsito de imagens por diferentes mídias, mais eletrônicas ou mais artesanais, me inspira.
Recentemente, você fez um projeto de ilustrações para um livro infantil. Como foi adaptar a sua inspiração e o seu processo criativo para um briefing superespecífico: um livro infantil, que é aberto, mas ao mesmo tempo imagino que tenha suas restrições, um pensar diferente.
Foi um processo totalmente diferente. Recentemente eu trabalhei nesse projeto que se chama O aquário de Pedro, uma história criada pelo escritor Diego Mauro. Foi um encontro espontâneo, mediado por um amigo que sabia que o Diego tinha uma história e estava em busca de alguém que pudesse ilustrar. Então falei: “bom, eu não tenho uma história, mas tenho muita vontade de ilustrar” (risos). E deu certo. Em alguma medida, eu me permiti revisitar esse gosto por livros infantis. Tentei fazer um livro que eu gostaria de ter visto. Inclusive, eu optei por fazê-lo todo a lápis de cor, que é um material bastante difundido na infância e a que temos um acesso maior, com o qual temos familiaridade. Assim, espero alcançar esse encantamento nas crianças, que poderão perceber que “ó, meu Deus! Isso aqui foi feito por alguém, e eu posso fazer algo parecido com o lápis de cor”. Sinto também que pude usar algumas das habilidades adquiridas na formação em cinema. O livro tem uma narrativa que é muito cinematográfica no pensamento das imagens e na edição da história.
E quais são os principais desafios que você já vivenciou na sua carreira como artista?
Eu acho que essa pergunta é a mais difícil, sabia? (risos) Não me ocorreu nenhuma coisa muito específica, mas eu fiquei pensando um pouco na minha trajetória, em quais foram as dificuldades. Eu me formei em cinema e acabei não concluindo a formação em artes visuais, mas penso que mesmo se eu tivesse concluído, não sei se eu teria tido acesso às informações que aprendi na marra. E vindo de um lugar em que não era comum ser artista, não havia muitas referências próximas a mim. Tive que ir “cavoucando”, tentando entender quais eram as regras do jogo. Com isso, levei muito tempo para entender a importância de ter um portfólio organizado ou quais eram os editais interessantes nos quais eu deveria me inscrever. Quando eu estava começando e ainda morava em Porto Alegre, tinha uma sensação de muita distância em relação a esses espaços expositivos e de oportunidades. Com o tempo, fui entendendo que tipo de organização eu teria que ter para conseguir circular. Acredito que a dificuldade seja essa: aprender enquanto estou fazendo, descobrir no susto quais são as dinâmicas e como tenho que operar dentro do sistema da arte. Isso nunca me foi dado. Hoje eu já entendo melhor o que eu preciso fazer, que tipo de documentação eu preciso ter, quais os contatos eu posso fazer com as pessoas e quem são os agentes do sistema. Hoje, talvez haja a popularização de alguns grupos de estudo ou grupos de acompanhamento que podem suprir essa lacuna da formação, mas, de forma geral, a gente entra na carreira de uma maneira muito cega, e vai aprendendo do jeito que dá.
Existem diversas formas de criar uma carreira no mundo das artes, não há somente um único caminho. Você mencionou essa mudança de Porto Alegre para São Paulo, há quanto tempo você se mudou para São Paulo?
Eu estou aqui desde 2017, então seis anos.
Você diria que essa mudança foi a chave para sua carreira?
Sim, eu vim para cá com esse desejo de entender melhor como as coisas funcionam e para tentar me inserir de uma forma mais incisiva. Essa mudança foi bem importante para conseguir ter acesso a essas informações pouco nítidas, para conseguir me organizar melhor e entender um pouco mais da profissionalização da carreira. Eu tive acesso a grupos alternativos de formação, que supriram essas lacunas de formação. E, lógico, aqui tem uma concentração, para o bem e para o mal. É uma pena que aqui seja uma cidade que concentra tanto dessa movimentação, enquanto os outros lugares ficam muitas vezes desassistidos, mas tem sido ótimo habitar essa efervescência. Estou superfeliz por estar aqui conseguindo fazer o que eu amo.
Antigamente, a universidade era o local onde você conheceria os seus pares e conseguiria criar esses grupos de suporte. E hoje em dia não, é muito mais fácil se organizar online e encontrar outras pessoas fora do seu cotidiano.
Tem sido muito rico participar desse tipo de formação alternativa, que de fato acolhe pessoas em diferentes momentos da carreira. Tem pessoas com uma carreira mais estabelecida que estão ali para conversar sobre o trabalho, mas também tem pessoas que estão começando e buscando os primeiros insumos para começar a trabalhar. Nessas trocas de pessoas em diferentes contextos e momentos da carreira, a gente consegue aprender um com o outro. Tanto com quem tem mais experiência quanto com quem está chegando cheio de desejos. Isso também dá uma animada quando a gente já está viciado nos próprios processos ou desiludido com algumas dinâmicas.
Gabriel, como funciona o seu processo criativo? Partindo das suas inspirações até aquilo que se torna uma obra de arte realizada que chega no mundo?
Eu tenho o hábito de colecionar imagens. Tenho um pequeno acervo de material impresso, sobretudo revistas, manuais de como fazer trabalhos manuais e artesanais. E, em paralelo a isso, vou montando uma enorme coleção de imagens que coleto da internet ou por captura de tela. O trabalho acontece quando eu misturo esses elementos e temporalidades. Às vezes, eu vejo uma receita de bordado e penso: “bom, eu acho que isso poderia ficar muito interessante em movimento, sendo um trabalho eletrônico”. Ou quando eu vejo uma imagem digital que tem uma característica específica e me dá vontade de ver como ela poderia ser materializada fisicamente em uma mídia em que não se espera que ela esteja. E acabo transformando essa imagem digital em uma tapeçaria ou, enfim, em um desenho. É muito na curiosidade que acontece. Eu olho para uma imagem e penso: “nossa, eu tenho muita vontade de ver essa imagem em outra mídia ou ver de que forma ela se acomodaria em outro contexto”. E, lógico, tem uma discussão mais conceitual, que não é tanto desse fazer manual, mas sobre o impacto dessas imagens amadoras — que não são exatamente de uma mídia oficial e tampouco mediadas pelo campo da arte, mas que incidem sobre a construção dos nossos desejos, do nosso repertório e idealizações. Pode ser que o meu interesse se desloque para outras questões, mas eu tenho pensado muito nessa noção do lar idealizado, da vida romântica a dois, muito reiterado por essas imagens mais tradicionais, que têm essa característica do romance, do idílico, como algo quase inalcançável hoje em dia, ou mesmo no passado. E, ao mesmo tempo, existem essas imagens digitais que reforçam outros parâmetros de idealização de comportamento. Nós nos acostumamos a ver essas imagens produzidas por outras pessoas a respeito das suas vidas pessoais. Eu tento entender como isso opera na construção da nossa subjetividade, dos nossos próprios desejos e idealizações.
Eu fico promovendo esse pequeno curto-circuito entre um repertório tradicional e um repertório que é muito corriqueiro. Os dois são bem corriqueiros e triviais, e essas imagens que não são oficiais também operam na construção dos nossos desejos. Quando eu transporto uma imagem de uma mídia para outra, eu prefiro manter uma ambiguidade. Por exemplo, quando retomo um padrão de bordado tradicional em um trabalho digital. Muitas vezes esses padrões tradicionais são carregados de um caráter pedagógico e valores dos quais discordo. No entanto, essas imagens têm um apelo em relação ao que entendemos como memória afetiva, são belas, reconhecíveis e acessíveis também. Então, trabalhar com essa ambiguidade, esse deslocamento e esse fascínio, mas com um certo mal-estar que elas [as imagens deslocadas] causam, é onde eu me sinto mais à vontade.
Embora eu veja que, eventualmente, existe esse desejo de destruir essas imagens, eu acho que é importante olhar para elas, entender o que elas formaram, o que elas formam e como elas ainda têm um certo efeito na nossa percepção. Elas ainda oferecem justamente aquilo que elas prometem, que é uma beleza estranha.
Sim. E me parece que, pelos títulos das suas obras, além das imagens, você traz um pouco desse vocabulário. Quer contar para a gente sobre essa decisão?
Partindo desse aspecto da coleção, do acervo de imagens e de elementos que eu edito conforme faço os trabalhos, os títulos vêm um pouco dessa mesma coleção. As publicações a respeito de trabalhos manuais, do artesanato e das tarefas que muitas vezes são mais atreladas a um fazer feminino possuem uma linguagem específica e que é muito datada também. Quando a gente reencontra essa construção textual, hoje em dia isso tem um certo senso de humor, um pouco de absurdo. Eu opero quase como um editor de imagens e entendo os títulos como parte do trabalho, que é quase uma colagem. Então, vou brincando com essa linguagem, que é característica de um certo tipo de publicação e repertório. Esse deslocamento explicita algumas mudanças de ideologia e dá uma camada de humor e sentido ao trabalho.
Entrevista realizada em 31 de março de 2023 remotamente via Zoom