Marcelo Cidade

Marcelo Cidade (São Paulo, 1979) é um artista cujo trabalho está enraizado na experiência urbana e nas tensões entre o público e o privado. Seu olhar sobre a cidade não se limita à mera observação, mas também se estende a um engajamento ativo com ela, incorporando e questionando seus elementos em seu trabalho. Marcelo examina estruturas arquitetônicas públicas e privadas, em especial aquelas que poderiam passar despercebidas, por mais que tenham um impacto sobre como vivemos no ambiente urbano. Durante a conversa, o artista compartilha sobre seu processo criativo, a influência de São Paulo em sua arte e reflexões sobre arquitetura hostil e mecanismos de exclusão na paisagem urbana. Confira:

Marcelo, muito obrigado por me receber no seu estúdio. Gostaria de pedir que você se apresente, com qualquer informação que desejar, pensando em um público que não conhece a sua prática artística.

Eu sou Marcelo Cidade. Nascido e criado em São Paulo, Cidade é meu sobrenome de verdade, não é um sobrenome artístico [risos]. Me formei em artes plásticas pela FAAP em 2002.

O seu trabalho é bastante influenciado pela arquitetura e espaços públicos, especialmente os ambientes urbanos de São Paulo. Além dessa contraposição entre as esferas públicas e privadas, que são temas recorrentes. Como você vê a questão do espaço público em São Paulo em paralelo com a situação em outras cidades ao redor do mundo?

O meu trabalho acontece em viver as contradições estruturais de uma cidade do sul global, como São Paulo, com todos os seus problemas sociais e a violência urbana cotidiana, traduzir essas questões através da arte. Me interesso pela vida cotidiana, por pequenos gestos, ações, que a princípio podem parecer banais, mas que, quando se repetem, viram padrões sociais, reinventando a realidade, rompem com a normalidade. Essa tradução se dá em trazer para o âmbito da arte situações públicas e inverter polaridades entre o público e o privado, Grande parte dessas questões me interessa porque as vivo diariamente e percebo esse encolhimento do espaço público através da privatização dele e uma perda de espaço social comum e do bem-estar social. A cidade hoje em dia só é “pública” para quem tem dinheiro para consumir esse espaço dito “público”. Um espaço cada vez mais relacionada à especulação e ao espetáculo do consumo.

São Paulo é uma cidade com uma estrutura dos anos 1960, que cresce horizontalmente de uma maneira muito grande, e o capital vai indo de acordo com algumas questões. Isso está muito relacionado à dificuldade de conseguir ter uma prefeitura com capital que vai para o espaço público. Sempre há uma marca por trás ou um empreendedor privado, e os erros vão acontecendo, porque, do meu ponto de vista, não há outra saída. Os problemas sociais de fome e moradia popular são tão absurdos, são urgentes! 

O espaço público está cada vez mais nas mãos de empreendedores e do capital privado. Vemos isso no Ibirapuera, no Anhangabaú e agora no Pacaembu. Isso cria essas zonas cinzas, onde pessoas que foram criadas em condomínios, que utilizam saúde privada, que têm carros particulares, cujos filhos frequentam escolas privadas, desenvolvem uma aporofobia do espaço público. São condicionadas a isso, evitam o espaço público por medo de assaltos, sujeira, moradores de rua e de tudo que é visto como mau na sociedade. Quando essas pessoas vão para a França, falam que andam no metrô de Paris, que visitaram museus. Aqui, as pessoas não vão aos museus, não usam o metrô, por uma questão de classe e elitismo, do meu ponto de vista. E o meu trabalho vem nessa provocação. Porque eu fui criado em um condomínio, eu estudei em uma escola privada, queria ir para a escola pública, mas minha mãe não gostava muito da ideia. A minha maneira de escapar dessa lobotomia social foi pegar meu skate e sair de casa, ir andar no Anhangabaú ou no Parque do Ibirapuera. Fiz amizades com pessoas de diferentes partes da cidade, de diferentes classes sociais, e percebi que existe vida além do muro do condomínio. Vejo que, em São Paulo, as pessoas tendem a levar uma vida muito privada, e a vida pública vai diminuindo cada vez mais. Por exemplo, durante a pandemia, ninguém usava mais o espaço público em função do isolamento. As pessoas que ainda moravam em seus quitinetes foram perdendo seus empregos e acabaram indo para a rua, por causa da crise econômica gerada pela covid. O lugar público se transformou em uma gigantesca moradia popular no centro de São Paulo. Agora, com um governo mais para a esquerda, mais assistencialista, junto com as instituições de moradia popular, como o MSTC, que organizam as ocupações, essa situação tem melhorado, mas mesmo assim ainda se percebe a privatização desses espaços.

Irregular 02, 2022

Tornar o espaço público reabitável é, na verdade, uma solução mais barata do que equipar cada novo prédio com uma piscina, salão de festas e churrasqueira. No entanto, eu vejo um crescimento nos condomínios fechados, que se tornam quase cidades, minimizando a necessidade de interação com o mundo exterior. Mesmo prédios populares das décadas de 1950, 1960 e 1970 ainda dependiam do espaço público vizinho, como praças, piscinas públicas e academias. Hoje, tudo está concentrado dentro dos próprios condomínios.

Existem alguns condomínios com mais de 20 prédios que têm tudo o que você precisa ali dentro. Não é necessário sair. São microcidades dentro das cidades, e você vai se isolando cada vez mais do mundo exterior. Quando a pessoa precisa sair do condomínio, ela sai furiosa.

Eu vivi muito tempo no centro devido ao trabalho, apesar de morar mais afastado. Naquela época, todos os espaços gays e alternativos se concentravam no centro, na Augusta. Hoje em dia mudou totalmente, mas era um espaço onde você tinha contato com outras pessoas, porque você precisava estar ali. Não tinha aplicativo ainda, não tinha essa facilidade. Naquela época também existia muito mais preconceito do que hoje, em outros espaços que agora conseguimos conviver com mais abertura. Hoje, não me surpreenderia ver grupos de amigos se reunindo em condomínios em vez de bares.

Meus pais moram em Taboão da Serra. Então, passei minha adolescência inteira dentro de um ônibus na Francisco Morato. O que sinto um pouco é que também existia, como você mencionou, essa necessidade de ir para o centro. Hoje em dia existe uma descentralização da cidade de São Paulo. Pós-covid, percebemos que o centro já não é o mesmo. Vemos a Augusta, por exemplo. O centro ficou muito mais difícil de sair à noite. Durante a pandemia, depois das oito da noite, não era possível atravessar a Praça da República sem ser assaltado. As coisas ficaram muito mais hardcore. Pequenos assaltos e grupos de pessoas que chegavam te limpavam tudo e desapareciam. E a polícia também desapareceu. Não havia mais policiamento no centro. Agora a vida está retornando, mas, por meio de empreendimentos de revitalização, dos grandes grupos que estão comprando prédios antigos e os reformando para a classe A com todas as concessões de imposto para que esses empreendimentos possam acontecer. Circula um boato de que, na verdade, essa deterioração do centro de São Paulo é um motivo para primeiro expulsar a população para longe, porque ficou muito perigoso, ficou inviável morar no centro, e, segundo, especular, vender para um grupo. Dizem que aquilo vai bombar daqui a alguns anos, mas de uma maneira privada, como o Anhangabaú. O Anhangabaú, hoje em dia, eles fizeram aquela grande reforma, colocaram o cimento queimado, umas luminárias fascistonas. Eu cresci no Anhangabaú andando de skate, então tinha uma relação afetiva muito forte com aquele lugar. Eu ia para lá andar de skate, fiz amigos, tinha uma relação. E, de repente, jogaram tudo aquilo fora, cimentaram e lotearam. Agora está cheio de grades. Quando acontecem os eventos de música eletrônica, eles fecham tudo. Você não consegue atravessar, é preciso dar uma volta enorme. E ali virou um quintal de gente rica que paga R$ 700,00 para ver um show no Anhangabaú, quando antigamente era de graça. Concessões público-privadas, que são sempre muito mais privadas do que públicas.

Sim, há uma certa perversidade nessa noção de espaço público, quase como se tivesse vida própria, o que não é verdade. Me lembrei de St. Andrews, uma cidade universitária no norte da Escócia, onde membros da família real estudaram e é considerada uma das melhores universidades do mundo. Havia uma estação de trem lá, fechada em 1969, e atualmente uma nova está sendo construída. Embora não seja uma política pública aberta, é questionável se isso foi feito para limitar o acesso.

Eu comecei a perceber essa relação de arquitetura hostil não aqui em São Paulo, mas primeiramente na Holanda. Acredito que Amsterdã e Roterdã são cidades que tinham uma arquitetura tão aberta, que, nos últimos tempos, com as privatizações e os governos mais de direita, começaram a privatizar esses espaços públicos. Tem um arquiteto de quem gosto muito, Aldo Van Eyck, que no pós-guerra já trabalhava com a prefeitura de Amsterdã. Ele começou a usar os terrenos baldios entre prédios para fazer playgrounds. E não eram playgrounds para crianças, mas para adultos, para retomar um espaço de convivência, para que as pessoas traumatizadas por uma guerra pudessem voltar a conviver. Então, ele projetou esses espaços para convivência. Comecei a me interessar muito por ele e a estudá-lo bastante. 

Projeto (re)contrutivo : Concreto 82, J.L, 2024

Não tenho certeza se isso é comum em São Paulo, mas existem alguns espaços públicos com áreas onde você poderia se sentar ou se deitar. Agora, eles colocaram pequenas pedras nesses espaços. Você pode até se sentar, mas só por um curto período antes de ir embora. Isso também evita que alguém durma lá.

Sim, existem em diversos lugares de São Paulo, normalmente debaixo de viadutos. Por aqui, no centro, há uma situação bem particular. Normalmente, eu chego aqui no ateliê e há pessoas dormindo ou usando crack perto da porta de aço. Eu aprendi a lidar com essa situação, mas algumas pessoas jogam água para mandarem essas pessoas embora. Algumas pessoas, cruelmente, jogam sabão em pó ao redor, entre espetos, grades, em frente ao portão e tudo mais, para que não se deitem ali, tornando insalubre, respirar o sabão em po. Outra situação que percebi foi a ausência de tudo que era feito de ferro e aço na cidade. A questão econômica e a miséria estavam tão grandes que os moradores de rua começaram a roubar tudo, desde esculturas, corrimãos de pontos de ônibus, bancos de ferro, até tampas de bueiros. Eles passavam de noite, arrancavam e levavam embora, inclusive, arquiteturas hostis. Virou uma subeconomia dentro da economia.

É um ato de rebeldia não pensado.

Totalmente não pensado. Quando cheguei aqui pela primeira vez (no meu ateliê aconteceu algo muito curioso: a trava da porta de aço, que é um grilhão de latão, desapareceu. Quando eu vi, entrei em pânico, mas tudo estava no lugar, ninguém tinha entrado, os computadores estavam intactos. Fui até a loja onde comprei a trava, contei a história para o vendedor, e ele me disse que a pessoa se senta, pega um martelo, bate na trava e a abre. Perguntei: “Como assim uma coisa que você me vende, que é para segurar, abre tão facilmente?”. E ele explicou que em vez de abrir para arrombar e entrar, a pessoa apenas rouba e leva a trava para trocar por drogas nos próprios ferros-velhos, uma economia paralela. Eles não trocavam mais ferro-velho por dinheiro, mas diretamente por crack. Então, aqui no centro, virou uma espécie de “corrida do ouro”. Ao mesmo tempo que Bolsonaro incentivava as pessoas a irem para a Amazônia fazer o garimpo de ouro, aqui no centro o garimpo era por ferro. Então, você tinha essa relação super dúbia, em que tudo de ferro desaparecia. Até que, umas duas semanas atrás, eu estava aqui trabalhando, ouvi um barulho de pancada, abri a porta e era um cara tentando arrombar. Eu falei: “Oh, meu amigo, você está louco!”.

Essa relação para mim é importante, estar aqui no centro, lidar com essas pessoas… Eu tentei entender essa problemática por uma razão mais humana. E, voltando ao ponto do trabalho, percebi que estava ficando um pouco em função de terceirizar a produção. E isso estava me incomodando. Eu me sentava no ateliê com o meu assistente, desenhava um projeto, mandava fazer e chegava pronto. Eu perdia toda essa parte processual e a parte humana de pôr a mão na massa, que é algo de que eu gosto tanto, e estava perdendo. Eu estava ficando tão frio como todas as relações humanas. Estava trancado, sem ver amigos, sem ver pessoas, sem ter contato com ninguém, numa depressão maluca, terceirizando obra como se fosse uma empresa. Isso estava me incomodando. Então, eu falei: “Eu gosto de pintar, eu gosto de spray, vamos reinventar isso”. Acredito que o humanismo vem dessa prática como sendo a mão do artista, do ato de fazer… Mas também repensar uma pintura que fosse conceitual, onde eu não coloco a mão, porque uso uma lata de spray. Eu tenho uma prática que é muito mais relacionada a uma pintura industrial de portão. Na verdade, para mim, é como se fosse mais uma gravura do que uma pintura. Eu redesenho o portão no computador, com nitidez, projeto e traço com uma caneta fosca. Depois, venho com o nível de bolha, tirando e dando as medidas exatas, mascaro tudo com fita-crepe e venho com tinta spray. Eu tento usar uma tinta spray ruim, não uma tinta spray profissional de grafite, pois elas são plásticas, são chapadas, parece que você adesivou algo. Para mim, interessava um pouco a sujeira. Me interessava ver um pouco a translucidez da tinta, às vezes, a cor volta, porque a tinta não cobre tanto, que é uma tinta industrial para pintar carro mesmo.

Sociedade Anônima 2, 2024

Marcelo, você poderia nos contar um pouco mais sobre a exposição em que está trabalhando atualmente? Como você planeja apresentar as obras no espaço?

A exposição vai se chamar “Pânico na zona sul”. Em princípio, é um título em homenagem à música do Racionais MCs, mas também me interessa trazer essa noção de que sul é esse. O Mano Brown fala da zona sul do Capão Redondo. Eu vim da zona oeste, do Taboão, mas, no Rio de Janeiro, temos essa diferença geográfica do sul de São Paulo e o sul do Rio. No Rio de Janeiro, a zona sul é a área mais rica. Então, o pânico na zona sul é sobre trazer o pânico de São Paulo e jogar na zona sul do Rio. O espaço é uma galeria no formato cubo branco, e a minha ideia, a princípio, era anular o cubo branco enchendo a galeria de cobertores de doação, mas andei repensando o projeto expositivo e acho que como as pinturas são de grande escala, poderia acontecer uma redundância… Os trabalhos que vou mostrar são cinco pinturas de tinta spray branco sobre cobertores de doação, aqueles usados por moradores de rua durante o inverno aqui em São Paulo. As pinturas são feitas a partir de uma tipologia de portões de garagens de carros de casas e prédios da cidade que venho pesquisando já há algum tempo. Essa série se chama “ Sociedad Anonima”. E tenho também os trabalhos que sao pinturas em que reproduzo, usando tinta spray branca, pinturas concretistas, de artistas como Alfredo Volpi, Ivan Cerpa e Judith Lauand, também sobre os cobertores, que se chamam “Projeto (re) construtivo”. Quero explorar não apenas o lado construtivista, mas também a cópia de, através da apropriação, uma espécie de falso construtivismo. E um projeto na fachada da galeria, chamado “hiper memoria arquitetônica” (galeria Athena), que funciona como um sight specific. Vou contruir na fachada a forma da antiga casa que havia no terreno, antes de ser galeria, uma restituição da memória arquitetônica, usando chapas metálicas. Dessas que vemos nos canteiros de obras aqui em São Paulo.

Um dos motivos de eu perguntar como vai ser exposto é pensando que, quando você coloca os trabalhos no cubo branco, e alguém sugere “ah, legal, mas vamos colocar uma moldura, certo?”, ao colocar uma moldura, um vidro, caímos novamente na armadilha da proteção, da separação, de um outro escudo.

Exatamente, A minha ideia é fixar no prego e pendurar na parede mesmo. Me interessa a relação entra a pintura (rígida) em relação ao material do cobertor, que é mais orgânico, por isso não me interesso no uso de um chassi (nesse caso). Mas ainda tenho algumas dúvidas, porque o tecido pode desgastar. Me interesso nessa relação entre a rigidez da pintura e a maleabilidade do material, a deformidade. Ele não tem uma forma rígida, é tudo meio molenga. Então, estou desenvolvendo e seguindo para esse lado.

Pensando também nesse movimento, os trabalhos da exposição “A retórica do poder”, inspirados nas black paintings de Frank Stella, foram feitos com suportes de sapato?

Sim… Mas… Aquelas não eram pinturas, eram objetos, era uma chapa canaletada de cor preta. Aquilo é usado em mercados, em lojinhas de 99 centavos, eles colocam o ferro e enchem de produtos. É como se fosse uma canaleta para você pendurar coisas.

E, também pensando nesse aspecto formal dessa arquitetura, especialmente nos Estados Unidos, é interessante observar, em contraste com a sua obra Expansão por subtração, onde se têm as molduras com os vidros quebrados. Essa estratégia de quebrar o vidro, colocá-lo nos muros, no cimento ainda molhado, cria algo que é quase o oposto dessa estratégia de separação, porque é muito mais orgânica.

Esse trabalho vem de um outro, em que eu desenho uma janela, dividindo o cubo branco entre dentro e fora, mas cujo interior e exterior são iguais, e a única coisa que divide é esse caco de vidro. Nesse trabalho, o caco de vidro é muito agressivo, pois está voltado para nós. Quando eu mostrei na galeria, era um de cada lado, então você chegava no espaço e ficava no centro. Qualquer um que passasse muito perto se rasgava. Criava-se uma situação realmente impositiva, mas, ao mesmo tempo, havia uma relação muito direta com a história da arte, mais ainda com a pintura, com a ideia da moldura que divide o interior e o exterior da pintura. E essa pintura renascentista que sempre vai tentar reproduzir a ideia de perspectiva ou trazer a paisagem para dentro. Por exemplo, a ideia de trazer a paisagem da França para dentro de um castelo e essas relações entre dentro e fora que me interessam. Esse trabalho vem dessa situação realmente de ter os cacos de vidro no muro, mas eu o fiz primeiramente na Bienal de São Paulo, da qual eu participei com a Lisette Lagnado, em 2006, em que coloquei o caco de vidro em cima da parede onde estavam os trabalhos do Gordon Matta Clark. Esse trabalho funcionava quase como uma coroa de vidro para o Matta Clark. No entanto, ele ainda ficava escondido. Era como se fosse uma parede de mentira que ficava com um caquinho de vidro em cima e as obras embaixo. Quase como um ornamento. A luz batia, ficava bonito, ele ficava longe. Era agressivo, mas não protegia nada, estava apenas ali. E, nesse segundo momento, ele foi muito mais agressivo, porque tinha relação direta com o corpo. Eram duas situações opostas.

Expansão por subtração, 2014

E como você vê na sua pesquisa esses diferentes níveis de arquitetura sendo utilizados para essa separação? Porque nós falamos sobre o caco de vidro, que é uma classe baixa, a classe média com os portões. Também tem a questão social, em que o governo coloca essas barreiras.

A classe alta mora bem longe. No topo de um prédio, em Alphaville, sempre existem essas distâncias. A distância é uma questão muito interessante para percebermos como a arquitetura moderna pode ou não funcionar. Quando fui a Brasília pela primeira vez, comecei a entender como o modernismo funciona e como as distâncias entre o pobre e o rico são uma questão. Nas superquadras, você vê a natureza entrando nos prédios sem grades, tudo é volátil. Quando você passa de um lugar para o outro, é funcional, porque não se previa a classe trabalhadora ali. Niemeyer já sabia muito bem onde a classe trabalhadora estaria, tanto que os limites de Brasília são muito visíveis. Quando se vem do metrô, vemos Brasília acabar e a cidade-satélite começar. E quando se chega à cidade-satélite, vemos uma cidade como qualquer outra, subdividida, com todas as suas problemáticas e características.

A distância é um elemento interessante e bastante sutil. Existem casas nos Jardins com entradas abertas, grandes jardins. Claro, há câmeras. Então é óbvio que, para uma pessoa que quer invadir a casa, há essa barreira em que você se sente quase em um campo aberto, onde alguém pode atirar em você a qualquer momento.

São Paulo é uma cidade muito maluca em relação a isso. Nós vimos nos anos 1950, com os empreendimentos privados dos jardins ou do City Lapa, que já se previam essas cidades como esses bairros de Los Angeles com muitas casas, arborizados, com ruas não muito grandes, mas com lugares afastados, onde a periferia não entra muito bem. Você pega um carro e vai para a City Lapa ou para o Alto de Pinheiros, as ruas são tão curvas, são tão grandes, que você se perde ali dentro, você precisa de um carro para chegar ali. E eu estou falando isso porque eu fui ver um projeto da Carla Juaçaba numa casa modernista em Alto de Pinheiros. Era uma casa modernista, super linda, e o muro da casa pequeno. Era maravilhoso. E ao lado era um paredão enorme, cheio de arame farpado, câmera. E eu estava conversando com uma arquiteta, sobrinha da dona da casa, que disse que nunca invadiram, justamente porque é toda aberta. Isso me lembra um pouco a Holanda também, essa relação da arquitetura de, quanto mais visível, aberta, você deixa a sua vida, menos você deve para a sociedade. E, nessa dinâmica, ninguém vai te assaltar, porque eles sabem que ali dentro não tem nada. Agora, quanto mais você protege o seu castelo, adicionando mais elementos de segurança, placas e outros, mais interesse desperta na pessoa para invadir, mesmo que você não tenha nada. Para mim, essa relação é muito intrigante. Eu saio de chinelos, converso com moradores de rua, ofereço água. A pessoa entra aqui, toma água, usa o banheiro. Eu não tenho medo de ser assaltado, pois a pessoa sabe que eu não estou aqui ostentando um Rolex. Então, acredito que essa relação entre violência e a invasão do espaço privado tem muito a ver com como você se comporta na sociedade. Se você anda em um carro importado com um Rolex em um lugar de baixa renda, está estimulando a raiva social e acentuando as diferenças. E essa diferença muitas vezes é o que gera a violência.

Isso acaba criando uma espécie de duplo antagonismo, essa discordância da sociedade.

E essa é uma questão de trazer o humano de volta. Na verdade, o meu grande projeto humano para São Paulo é tentar tirar grades de todos os lugares. Um dia desses, eu estava vendo algumas fotos de Higienópolis dos anos 1950/1960, fotos dos prédios modernistas, e nenhum tinha grade. Era tudo vazado, o jardim ia até a calçada, as pessoas podiam se sentar lá. Hoje em dia, é tudo grade. Isso é fruto de um medo social. A cidade é realmente exaustiva, as pessoas vivem com medo e há falta de troca humana porque há cada vez menos espaço público.

Me faz lembrar de quando o Shopping Cidade Jardim foi inaugurado e não era possível chegar lá sem carro. Porque, pensando agora nos novos projetos arquitetônicos de São Paulo, mesmo aqueles que têm um interesse no público caem nessas armadilhas.

A violência à mão armada é a que menos me atinge, mas convivo com todos os outros tipos de violência gerados pela desigualdade social, por exemplo: no inverno, eu tenho que pular corpos para chegar aqui. Literalmente. Quando eu não venho de bicicleta, eu venho a pé, passo embaixo do Minhocão. Limpar fezes humanas aqui na porta do meu ateliê virou prática comum. No começo, eu me assustava muito. Hoje em dia, eu já dou conta, e me sinto muito bem. O que o cara vai fazer? Não tem banheiro público. O cara precisa defecar. Eu adoraria chegar aqui e fazer uma pintura linda, a óleo, bonitinha, uma paisagem do mar. Mas não, minha vida é lidar com esses contrastes e traduzi-los para a realidade do cubo branco, de colecionadores, de pessoas que consomem arte, e mostrar que isso também existe, que nós vivemos isso. O meu trabalho é viver essa situação. Coexistir.

Entrevista realizada em 11 de março de 2024, no estúdio do artista localizado no bairro da Barra funda em São Paulo.